quarta-feira, 4 de junho de 2025

IDENTIDADE EXPOSTA

Maria Teresa Freire.


Eu, um artesão ferreiro, com um passado negro bem encoberto, vivia normalmente com esposa e filhinha de seis anos. Mesmo tendo sucesso com minhas peças decorativas e joias em metal e prata, eu não gostava de publicidade; nas exposições eu não comparecia (ou não me deixava conhecer, nem ver; totalmente anônimo). Nada de redes sociais. Evitava fotos, mesmo nos eventos em que acompanhava a minha esposa.

Entretanto, os curiosos ansiavam por saber da nossa vida pessoal. Fomos fotografados em um domingo à tarde, enquanto passeávamos no parque, desfrutando do dia ensolarado. Em seguida, as fotos foram postadas nas redes sociais. Os que nos conheciam manifestaram-se com comentários alegres e elogiosos. Os que não nos conheciam queriam saber quem era aquele casal bonito e feliz. Isso iniciou o fim do meu anonimato. 

Alguém relacionado ao meu passado reconheceu-me e escreveu em letras maiúsculas: “ele cometeu assassinato, na sua cidade natal! Ele é um assassino!” Os comentários foram variados: de surpresa, de acusação, de indignação, de incredulidade e até em tom jocoso, achando que era enganação.

Daí vieram as consequências que eu temia:  escrutinar sobre minha esposa, especular sobre seu trabalho falando mal da sua atuação como advogada, espalhar mentiras, suscitar desconfiança. Da minha filhinha não tinham o que dizer: descobriram a Escolinha que ela frequentava e os repórteres rondavam para fotografá-la e tentar falar com quem fosse levá-la e buscá-la.

O caos instalou-se nas nossas vidas. A senhora que me reconheceu denunciou-me incentivada por outros moradores da nossa antiga cidadezinha. Com a denúncia eu fui chamado para esclarecimentos. Contratei advogados que me acompanharam ao interrogatório. Como não havia provas concretas e mais de 20 anos haviam transcorrido, eu fui liberado. Todavia o processo foi instaurado, todas as informações da época foram recuperadas e a data do julgamento marcada. Meus advogados preparavam minha defesa, com testemunhas e as evidências favoráveis possíveis. Entretanto, as provas eram contra mim. 

Somente minha irmã mais velha sabia a verdade. Eu não a via há 20 anos. Depois que escapamos mudamos cor e corte de cabelo para não nos reconhecerem facilmente. Tomamos direções diferentes para despistar nossa fuga. A última notícia dela foi sobre sua ida para os Estados Unidos da América (EUA), em um programa de intercâmbio artístico. Ela havia se inscrito na época do Colégio e ganhado o concurso. A comunicação do resultado foi no dia fatídico.

Como fugimos, ela fez contato com o programa e conseguiu se integrar. Com o dinheiro que tínhamos, ela também pode seguir adiante. Depois, nunca mais recebi notícia dela, até alguns dias antes do meu julgamento. Quando nos encontramos foi uma emoção tão intensa, sem reação nossa no primeiro momento. Ao despertarmos daquele transe inicial, revivendo momentaneamente o episódio que mudou totalmente nossas vidas adicionado à ausência de 20 anos, conseguimos nos abraçar. Atualizamos aspectos importantes daquele período distante. 

Ela testemunharia. Junto viriam outras pessoas daquele período: uma vizinha e seu filho que acompanharam a perseguição do homem à minha irmã de 16 anos. Na época, a luta dela para se livrar da agressão violenta e por fim matá-lo com tesouradas (‘a arma’ que ela tinha na mochila) em sua autodefesa.

O dia do julgamento chegou. Minha irmã foi chamada para depor contando toda a versão verdadeira, confirmada com os depoimentos da vizinha e filho. Na época não se manifestaram com pavor de serem mortos pelos comparsas do estuprador. A mídia acompanhou o julgamento e os depoimentos causaram furor na opinião pública. Com os fatos reais vindo à tona, apareceram outras mulheres também estupradas pelo mesmo homem. Elas foram ameaçadas de morte se revelassem o estupro, à época.

Minha irmã não foi condenada por ter agido em legítima defesa como comprovada pelas duas testemunhas e os relatos das outras pessoas demonstrando a intenção de estupro.   “Conforme o Código Penal, a Legítima Defesa é considerada, Excludente de Ilicitude. Isso implica dizer que quem age em legítima defesa não comete crime. Não confunda: não é a mesma coisa que dizer que o crime existe, mas não existe pena. Simplesmente não houve crime e, portanto, não há que se falar em pena.  (https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-que-e-legitima-defesa-para-o-direito-brasileiro/148937508)”. 

Entretanto, a parafernália midiática e as opiniões que se formaram em torno de mim e da minha família foram estressantes demais. Os comentários eram os mais variados, expondo minha vida pessoal; minha esposa teve sua vida profissional prejudicada, a ponto de afastar-se do Escritório de Advocacia em que atuava. “Afinal, ela fora enganada, mas não percebeu?” Muitos questionavam. “Ela era uma advogada criminalista e se casara com um homem com identidade falsa para escapar da justiça. Não sabia nada da vida passada do marido?” Continuavam questionando, pois somente agora eu fora inocentado. Até então era considerado culpado dos homicídios acontecidos na época.

Não era totalmente mentira que eu usara o casamento para afirmar minha nova identidade. Deu-me um status que me garantia vida tranquila e respeitada. Todavia, as consequências eram maléficas às duas mulheres da minha vida. E eu as amava. Nunca pensei que amaria uma mulher intensamente. Assim como nunca pensei em ter uma filha a quem eu amaria e trataria como uma preciosidade. Era-me difícil lidar com a situação sem ter um sentimento forte de culpa.

Minha esposa também se ressentiu com o fato de ter sido enganada durante tanto tempo. Ela acreditava que era merecedora de confiança, inclusive em relação aos meus assuntos pessoais e eu a traí. Esse fato afetou-a sobremaneira. Ficamos um pouco distantes, inclusive com minha filha. Eu não ia mais buscá-la na Escolinha por conta dos repórteres espreitando-nos, ansiosos por fotos e entrevistas. O mesmo aconteceu com nossas saídas: sem restaurantes, cinemas, passeios nos parques e outros divertimentos outdoors. Sempre havia um repórter à espreita para conseguir uma declaração ou uma foto inédita. Com esse comportamento cauteloso, a convivência amorosa, agradável e confiante entre nós arrefeceu. 

Sentia-me muito desconfortável e acabrunhado. Eu estava atrapalhando a vida das duas, principalmente da minha esposa. A reputação dela como advogada criminalista ficou abalada. Muitos indagavam: “não soube reconhecer um criminoso?”  Mas eu não era um criminoso! 

Eu teria que me afastar para que esquecessem os fatos e as deixassem em paz. Foi o que resolvi. A despedida foi triste, entretanto seria melhor para todos. Fechei meu atelier. Levei comigo as principais ferramentas e máquinas menores. E sumi.  Eu era especialista em desaparecer. Voltaria um dia? Não sabia dar a resposta nesse momento da partida. Talvez o futuro me desse a resposta. 

Por: Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 
Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.
Presidente da ALB - Paraná.

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