DRª Virginia Pignot.

Relação de Domínio e redenção

Vou lhes falar de um filme francês luminoso, classificado pela crítica de “obra-prima”, apesar do assunto grave: trata do amor tóxico de um pai, e mostra a possibilidade de libertação, não sem pena, para a filha. A entrevista da realizadora Emmanuelle Nicot e da jovem atriz que interpreta Dalva, abre o caminho para a compreensão da motivação da realizadora. O cenário foi escrito em quatro anos, a encenação nos faz esquecer que os atores estão interpretando seus papéis.

A realizadora nos informa que teve, foi objeto na sua vida, de uma relação de domínio. Essa questão, que ela teve que trabalhar na sua vida pessoal, lhe interessa. Percebeu que a relação de domínio com os pais é das mais difíceis de se desfazer. Como as pessoas que são vítimas de uma relação de domínio lidam com isso? Por que a denegação do fato pode ser muito forte? Que tipo de encontro pode ser determinante no caminho da “libertação”? Trazendo o percurso singular da jovem ‘Dalva’, o seu filme, como seus dois curta metragens, é sua maneira de tratar a questão.

Construção do cenário

Durante a realização do seu curta metragem, “A L’Arraché”(A Força), a realizadora esteve em imersão durante alguns meses em um Centro de Acolhimento de Urgência para adolescentes (abandonados, maltratados…). Em seguida ela acompanhou durante anos duas pessoas encontradas neste Centro, sendo testemunha do caminho percorrido por elas entre a separação da família e a ‘cura’ da relação de domínio, do trauma do maltrato... Foi daí e das histórias contadas pelo seu pai, antigo educador, que traços de personagens do filme vieram, da própria Dalva, da sua colega de quarto que se tornou com o tempo a sua melhor amiga, do seu educador referente. Quanto à jovem atriz que interpreta Dalva, ela conta que ela não sabia o que significava a palavra “incesto”. Só quando foi escolhida para o papel os pais souberam dos detalhes da história e a informaram sobre o tema. Para trabalhar as cenas, a realizadora falava de Dalva à Zelda evocava os sentimentos, afetos que Dalva estava vivenciando. Zelda se transformava em Dalva só durante a filmagem.

Revelação 

O que não sabemos no começo do filme, mas vamos descobrindo com o tempo, é que esta criança que está entrando na adolescência foi vítima de um pai que a sequestrou aos cinco anos de idade, e a criava aparentemente com amor, mas escondida do mundo. Ele fazia escola para ela em casa, brincava, jogava, e aparentemente, na entrada da adolescência, quis iniciá-la aos jogos do amor.

O filme mostra com força como foi duro o caminho para a jovem de se desprender deste “amor” incestuoso, encontrar de novo seu lugar de criança e adolescente, tecer aos poucos a relação com a mãe amorosa que ela pôde investir com o tempo. E até o pai pedófilo a ajudou neste caminho. Quando ela vai visitá-lo na prisão ela diz: “Na escola dizem que tu és pedófilo, estão mentindo.” E ele se retira cabisbaixo, mas não sem dizer a sua filha: “Não, eles estão dizendo a verdade”.

Reconstrução e conclusão

O pai trazia para a jovem púbere roupas bastante femininas, maquiagem, a tansformava em menina-mulher. Dalva continuou seguindo este ritual quando chegou ao Centro. Incarnava a realidade que conhecera até então, vivenciando o questionamento como uma agressão, podendo se exprimir pela violência física; é emocionante quando ela decide apagar a maquiagem pesada, adotar um estilo mais natural, primeiro passo no descolamento do domínio paterno. Outro momento tocante é a cena do julgamento. O pai esta cabisbaixo, Dalva está ao lado da sua advogada, a mãe entra, se senta ao seu lado, elas ficam de mãos dadas… A emoção é maior quando sabemos que a primeira cena do reencontro com a mãe terminou com Dalva a agredindo fisicamente, dizendo que ela estava mentindo; a mãe contara a Dalva que se separou do pai porque ele a sufocava, mas que o casal devia fazer a guarda alternada, quando o pai desapareceu com Dalva sem deixar traços; o pai tinha lhe dito que ela os abandonara. O filme mostra também a importância do quadro judiciário, educativo e social no acolhimento de jovens “mal” amados. E para concluir com a realizadora: “ A questão do incesto é só um ponto de partida, eu quis fazer um filme sobre a reconstrução, a emancipação, um caminho em direção à luz.”