UM NATAL ESPECIAL

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Arlinda Lamêgo.


Desde que decidimos morar em São Paulo, passávamos as noites da véspera de Natal na casa da madrinha de meu filho caçula e, muitas vezes, ainda íamos ao almoço no dia seguinte também. Meus filhos cresceram no seio daquela família. Parecia com a minha, em Recife e de meu marido, em Manaus. Uma família grande, com nove filhos, todos casados e com filhos, o que preenchiam a casa. Ficávamos nos fundos, onde se amontoavam cadeiras e se conversava, bebia e comia, até chegar a hora da ceia de Natal. Descendentes de italianos, falavam alto, articulavam muito as mãos, orgulhavam-se da origem e de seu molho de macarrão. Era quase que impossível descrever a abundância de comida. Ali, eu aprendi a cozinhar tipos de carne, bacalhau e molho ao sugo e bolonhesa. Não era muito diferente da minha casa, tinha o mesmo padrão. A noite começava cedo, a família chegava aos poucos e se servia dos quitutes o tempo todo até a hora da Ceia, patês e salgadinhos. Eram cristãos também, como nós. Não podia faltar o famoso bacalhau com azeitonas e batatas, lombo, frutas natalinas, cerveja e vinho, sobremesas. Comida e bebida, amigos, congraçamento, as melhores coisas da vida. Agregada, fui bem recebida e realmente eu me sentia em casa.

Minha família também era grande e era outro jeito de comemorar, embora se assemelhasse muito à minha família paulista. Tínhamos o nosso próprio ritual para a noite de Natal. Esperávamos que desse a meia-noite para nos servirmos.  Nada de quitutes antes da Ceia. A gente ia à Missa do Galo que começava às 21 horas.  Muitas vezes, corríamos para chegar na hora da Ceia. Não podíamos nos atrasar. Era sagrado aquele momento. Era muito simples. Havia vizinhos que tinha um poder aquisitivo muito maior. Eu gostava de montar a mesa, com as toalhas de linho da mamãe, seus pratos ingleses e cristais que herdou de seus avós.  Na época, todos tínhamos a cristaleira e o trinchant, que muitos chamam de buffet. Mamãe também usava a louça e os copos de cristal aos domingos. Era uma louça inglesa de 24 pratos. Raras vezes, a irmã de meu pai vinha almoçar conosco aos domingos. Sentávamos à mesa, mas antes esperávamos papai fazer um discurso. Ficávamos olhando sem dizer uma palavra. Mamãe comprava um peru dois meses antes e me lembro bem ela colocando comida no bico da ave para engordá-la. Criança não podia vê-la matar o peru.  Às vezes, mamãe comprava também um porco, que chafurdava na lama por meses num cantinho do terreno junto à lavanderia. Chamava uma pessoa de fora para abatê-lo e nós não podíamos chegar perto. Morávamos em uma casa térrea com jardim e terreno grande atrás, com laterais livres. Tinha coqueiros, um na frente e outro atrás. Na lateral, duas mangueiras ofereciam seus frutos à vontade e a gente se fartava.  A casa era simples, mas curtimos bastante a nossa infância ali. Éramos oito filhos, cinco homens e três mulheres. Os primeiros casaram logo. A noite era reservada apenas à família.  Eu sentia uma sensação que “era só isso”, pois passava muito rápido. Depois da ceia, alguns vizinhos passavam nas casas uns dos outros para abraçar e desejar Feliz Natal. Era comum que comessem alguma coisa também. Mamãe nunca ia na casa de ninguém, mas ficava feliz em recebê-los.  Cada um tinha uma comida especial que a outra família não fazia. O queijo do Reino era o ícone que mamãe preservava, além do peru, pernil e bacalhau. Mamãe guardava dinheiro o ano todo pra comprar aquele queijo. No almoço, eram as mesmas comidas que sobravam da noite anteriores. Eu adorava enfeitar a mesa. Sentávamos novamente de forma solene e papai fazia o seu discurso. Ninguém se servia antes dele. bacalhau que mamãe fazia era imbatível. Fazia uma salada de bacalhau que não vi ninguém fazer. A ceia começava à meia noite.  Sentávamos todos, mas mamãe nunca, apenas servia. 

Eu havia comprado um novo apartamento e estava sem tempo de me mudar. Tinha vários empregos, consultório, levava os meninos à escola e suas atividades de inglês e jogos. Ao olhar a agenda, observei um dia vazio. Nem me lembrei que era Natal. Eu estava trabalhando muito. Vai ver que eu pensava que o Natal ia demorar, perdi a noção do tempo. Não pensei duas vezes. Marquei a mudança. Não demorou pra cair a ficha e eu descobrisse que era a véspera de Natal. O tempo passou e eu não vi. Meus filhos já eram adolescentes e não tinha mais a preocupação de comprar presentes de Papai Noel. O caminhão chegou cedo. Às três da tarde, estava tudo em ordem, casa arrumada, tudo no seu lugar. Não dava pra cozinhar, pois o fogão a gás de rua não havia sido ligado. Que fazer? O supermercado iria fechar às 18 horas. Corri até o shopping mais próximo e comprei alimentos prontos: arroz, frango assado, batatas, verduras, champanhe, sucos. 

O apartamento tinha uma varanda larga, onde coloquei mesa e cadeiras. Preferi não usar sala de jantar com seis cadeiras. Cobri a mesa redonda da varanda com a toalha de linho que trouxera da minha terra, e enfeitei com frutas frescas e secas. Coloquei umas velas, taças de champanhe. A noite estava quente, dali podíamos ver o brilho da lua cheia. Brindamos.  Éramos apenas nós quatro: meus dois filhos, meu marido e eu. Na varanda, conversamos e ficamos muito felizes. Nos abraçamos e nos confraternizamos. Comemos o frango assado com farofa e batata, sem saudade de um jantar requintado, nem do peru, nem do bacalhau, nem do pernil e nem de gente.  Hoje em dia, a cidade tem um paraíso de padarias que vendem ceias inteiras e ficam até mais tarde para retardatários. No mundo de celular compra-se pelo WhatsApp opções de cardápios e até entregam em casa. O poder de comunicação é incrível. Jamais esqueceria que era noite de Natal. Há trinta anos atrás não se podia contar com isso. Aquele supermercado era o que havia de mais sofisticado. Com meus botões eu fiquei me culpando: como eu pude esquecer a ceia do Natal?  Ou melhor que aquele dia era o Natal. Coloquei música natalina na vitrola e fomos muito felizes naquela noite. Meu filho, ao terminar a noite, disse que foi o melhor natal da vida dele. Depois disso, passávamos as noites de Natal apenas nós quatro. Descobrimos que aquela era a nossa família. E vivemos noites incríveis juntos nas noites de Natal, mas isso eu conto depois, são outras histórias.

Por: Arlinda Lamêgo - Recifense, Médica, Escritora e Poeta.


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