TRIUNFO E EU

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Sou Geógrafo por opção. Sempre me interessei pela natureza e as histórias que ouvia dos meus familiares sobre o sertão, os brejos, as secas periódicas, as diversas e peculiares regiões que formam o Estado de Pernambuco me deixavam, na infância e adolescência, com uma imensa vontade de viajar e abrir meus horizontes. Com esse estado de espírito latente, encontrei um dia, no gabinete de meu pai, um livro de Vasconcelos Sobrinho (João) Regiões Naturais de Pernambuco.
  
Li e reli bebendo seu conteúdo, foi um lenitivo a minha ânsia de conhecer o meio ambiente em que vivia. Um capítulo à parte me chamou atenção a Micro Região de Triunfo, no sertão do Pajeú. Perguntei a meus pais se era verdade aquilo tudo que ali estava escrito, "um oásis no sertão", "a cidade ficava a mil e dez metros de altitude", "a temperatura no inverno chegava a menos de dez graus", "o verde era perene, pois as chuvas eram regulares", "os melhores e mais profundos solos de terra roxa de Pernambuco" etc. Eles não só confirmaram como me contaram sobre os engenhos de rapaduras existentes, ainda usando o modelo utilizado no início do ciclo açucareiro, com os bois movendo a moenda, andando em círculos e outras coisas mais.

Perguntei, então, se me deixariam passar um fim de semana em Triunfo. Como era o mês de julho, época de férias escolares, seria possível viajar na sexta-feira e retornar no domingo, eles concordaram e me deram dinheiro para as despesas.
  
Foi a mais incrível aventura da adolescência: ainda não havia completado dezesseis anos.

 O ônibus para Triunfo saía da Estação Rodoviária do Cais de Santa Rita às três e cinquenta e cinco da manhã e a viagem durava uma média de doze horas, com o mesmo horário no retorno, o que me faria chegar ao destino no final da tarde da sexta-feira e retornar na madrugada do domingo. - Tudo bem, pensei eu! Terei duas noites e um dia para conhecer a cidade.

Comprei as passagens de ida e volta e retornei para casa vibrando com a perspectiva da aventura. Minha mãe arrumou a minha mala, preocupada e cheia de recomendações.

Fui dormir cedo e às três horas da manhã estava no portão da casa esperando um táxi. O tempo foi passando e nada de nenhuma condução aparecer. Às três e meia apareceu um ônibus, acenei para ele e o motorista parou fora do ponto, em frente onde me encontrava; não havia nenhum passageiro. Entrei e, sentando próximo ao condutor, lhe expliquei o meu problema de chegar à rodoviária do Cais de Santa Rita, antes da partida do meu ônibus. Ele me orientou para apanhar um táxi logo ao descer na Avenida Guararapes, o que fiz imediatamente ao chegarmos naquele local.
  
Mas que desilusão! Quando cheguei ao destino, em cima da hora, avistei um ônibus que parecia ser o meu, deixando a rodoviária. Mesmo assim, já sem esperança, aproximei-me do guichê e inquiri sobre aquela saída, ao mesmo tempo em que mostrava  minha passagem. O rapaz que me atendeu confirmou ser aquele o ônibus para Triunfo, porém que, eu não me preocupasse, pois naquele momento, pertencente à mesma empresa, estava saindo um ônibus para Monteiro, na Paraíba e que os dois coincidiam parar na mesma hora, para o café da manhã, em Caruaru. Aconselhou-me a apanhar o ônibus de Monteiro, sem nenhum custo adicional e trocar de veículo na citada parada.    

Embarquei, na certeza de conseguir o intento. A viagem foi sem incidentes, mas muito monótona, com muitas paradas, aumentando minha expectativa. Mais ou menos às oito horas, chegamos a Caruaru e logo fiquei sabendo que o ônibus de Triunfo havia acabado de sair. O cobrador e o motorista falaram comigo para não desanimar que, com certeza absoluta, os dois ônibus estariam juntos na hora do almoço em Placas (Cruzeiro do Nordeste), pois isto sempre acontecia por ser a parada para o almoço, mais longa que a do café em Caruaru. E assim continuei a viagem.

Alguns passageiros àquela altura já haviam tomado conhecimento do meu intento e passaram a me fazer as perguntas mais diversas sobre a perseverança em alcançar o tal ônibus, se estudava ou tinha família em Triunfo etc.
  
Falando a eles do meu desejo de conhecer o sertão, pois minha vida tinha sido toda no Recife, eles passaram a contar sobre suas cidades ou locais de origem. Discorreram sobre locais que eu nunca ouvira falar: Bom Nome, Mirandiba, Conceição das  Crioulas e outros que não recordo  mais.
  
Tudo ia muito bem até que um homem que se mantivera calado durante toda a viagem, levantou-se do lugar que ocupava e sentando-se ao meu lado, começou a fazer-me perguntas bem inconvenientes: se eu estudava, se trabalhava, em suma, o que eu fazia da vida. Isto não teria nada de mais se não fosse o tom irônico de sua voz.

Respondi-lhe laconicamente e como insistisse nas perguntas, levantei-me e fui
sentar numa cadeira próxima ao motorista. Daí a instantes ele levantou-se, sentando-se ao meu lado; novamente começou a me insultar na forma de menosprezo, perguntando se minhas mãos tinham calos e se alguma vez na vida eu havia trabalhado para merecer viver. Permaneci calado, olhando fixamente para a paisagem que passava através da janela, procurando ignorá-lo. Ele não arredou o pé. Após alguns momentos em silêncio, voltava à mesma tecla. Assim continuamos, até chegarmos a Arcoverde. Ele desceu para tomar um café e, não mais embarcou quando o ônibus seguiu viagem.  Foi um alívio, pois eu estava apavorado.
  
Assim que o ônibus partiu, os outros passageiros começaram a se aproximar de mim parabenizando-me pela minha calma e tranquilidade ao enfrentar uma situação tão delicada e que me defenderiam se ele continuasse com aqueles insultos. Voltaram então ao motivo da minha viagem, e ao meu desejo de conhecer o sertão.
  
Nesse ponto, comecei a ser convidado para ir com eles para suas cidades, seus sítios ou fazendas, explicando suas características e o que tinham de bom para me oferecer. E assim conversando e apreciando aquela gente boa, não senti o tempo passar e quando vi, já nos aproximávamos de Placas, que hoje denomina-se Cruzeiro do Nordeste.
  
Quando estacionou o veículo, o motorista perguntou imediatamente a alguém sobre o ônibus de Triunfo, sendo informado de que esse já partira. Disse-me então que, dali em diante, não havia mais esperança de encontrá-lo, pois iria seguir uma estrada, à direita, para Sertânia, a fim de chegar a Monteiro e o meu destino era seguir em frente até Sitio dos Nunes onde também dobraria à direita para alcançar a cidade de Flores e depois Triunfo.
  
Almoçamos num dos vários pequenos restaurantes da única rua da vila, uma comida simples, mas saborosa: galinha assada, arroz, feijão de corda, farofa de jerimum e ovos fritos na manteiga. Despedi-me dos bons companheiros de viagem com muitos acenos de lenços às janelas. Vi-me então sozinho numa rua poeirenta às duas horas da tarde em pleno sertão.
  
Minha ideia àquela altura dos acontecimentos, era apanhar o primeiro ônibus de retorno ao Recife. Assim pensando, me dirigi a um quiosque junto a uma grande cancela que fechava a estrada, pertencente ao posto fiscal estadual, por ser o local certo onde todos os carros paravam.
  
Chegando lá, expliquei ao funcionário de plantão meu intento, e esse me ofereceu um banco para sentar enquanto esperava aparecer algum transporte. Ficamos conversando e, casualmente, contei-lhe minha odisseia. De repente, ele disse:
  
- Antônio Lulu está ali consertando o caminhão e acho que ele vai para a feira de Triunfo que é amanhã. Vou lá perguntar se ele pode lhe levar.
  
Da palavra à ação foi um átimo. Voltou ele poucos minutos depois, dizendo que eu estava com sorte, pois o caminhão já estava consertado e ele, não só se prontificava a me levar, como já estava saindo. O "já estava saindo" dele ainda demorou mais ou menos uma hora. Mas afinal partimos. O caminhão era velho e não desenvolvia nenhuma velocidade, mas isto não tinha importância, eu estava muito satisfeito e o papo com Antônio Lulu era dos mais agradáveis. E assim começamos a nos arrastar pelas poeirentas estradas sertanejas.
Só havia um problema: ele não estava com pressa. Parávamos em qualquer povoado, vila, fazenda ou cidade onde ele tivesse um amigo e, em cada uma dessas paradas, demorávamos uma meia hora e por isto somando-se ao andar lento do caminhão, a tarde já ia a meio e ainda estávamos a uns dez quilômetros de onde tínhamos partido.
  
Numa dessas paradas, tive a experiência de conhecer um local de prostituição. Foi num lugarejo de nome Feliciano, onde só havia uma igreja quase em ruínas, umas poucas casas no correr da estrada e um casarão à direita da igreja, porém um pouco afastado dela. Quando entramos no casarão, Antônio Lulu foi recebido com alarido por duas  mulheres muito "alegres", notei que tinham bebido. Sem se preocupar em me apresentar, como nos locais em que estivéramos antes, ficou com elas conversando e rindo muito.
  
Sem ter o que fazer, me aproximei de uma janela e fiquei olhando a paisagem árida do sertão. Não sei quanto tempo passei assim, até que ouvi uma voz de mulher dizendo:
  
- Hem, hem! Tão bonitinho, parece um santinho.
Virei-me e encarei uma mulher bonita de uns trinta anos que, sentada numa poltrona, olhava curiosa para mim.
  
- De onde você é? Sinto que você não é dessas bandas. O que está fazendo  aqui? É amigo de Antônio Lulu? perguntou a mulher, engatilhando três perguntas ao mesmo tempo. Respondi-lhe no mesmo teor, com  três respostas de pronto.
  
- Sou do Recife. Estou de carona para Triunfo e conheci Antônio Lulu hoje.
  
- Mas que coisa! Vi você tão entretido na janela, que fiquei a cismar. Por que estava olhando para fora? Lá só tem mato.
  
- Eu nunca tinha visto o Sertão. É muito seco, mas muito bonito.
Estávamos assim entretidos, quando Antônio Lulu, vendo que estávamos conversando, largou as duas mulheres no meio da prosa e,  aproximando-se rapidamente  disse:
  
- Tá na hora de irmos embora, isto não é lugar para você!
Seguimos viagem sem outras paradas, até Custódia. No caminho, ele me perguntou o que a mulher tinha falado comigo. Ao lhe responder, balançou a cabeça e não disse nada.
  
Colocamos combustível e lanchamos  num posto em Custódia. O lanche foi quase um jantar, pois já estava escurecendo. Gostei muito da goiabada servida com queijo de manteiga. Perguntei ao garçom se tinha água mineral "Sabá", ele disse que não. Antônio Lulu perguntou como eu conhecia aquela água. Expliquei-lhe que meus pais moraram, no início da década de 1930 naquela cidade onde minha  irmã Mirian havia nascido. Aquela era a razão de conhecer a dita água, decorrente do fato deles falarem de como era boa, dos passeios que faziam para a fonte, quando ali residiram e, anos depois, eu ainda menino, ela passou a ser engarrafada e a recebíamos para consumo. Vindo também gaseificada, eu bebia com xarope de guaraná da Fratelli Vita, no lanche da tarde, muito melhor do que o refrigerante do mesmo nome.
  
Com a continuação da viagem, passamos por Sítio dos Nunes, já escuro, abandonando a estrada principal e pegando uma variante à direita. Àquela altura, Antônio Lulu me disse que iria me colocar num hotel quando chegássemos a Flores, pois já estava muito tarde para seguir para Triunfo.

Só notei que havíamos chegado a Flores porque me foi dito. Estava faltando energia elétrica e a cidade se encontrava totalmente às escuras. Paramos na casa de Antônio Lulu e ele disse que iria levar-me ao hotel a pé, para que eu pudesse saber retornar para sua casa na manhã seguinte.
  
Andamos pouco e entramos numa casa de aparência pequena, mas muito comprida. Uma mulher estava em pé na sala da frente, com um alcoviteiro aceso na mão.  Possivelmente havia nos ouvido chegar e se levantara para nos receber.  Antônio Lulu disse-lhe a que tinha vindo, recomendando que eu deveria estar na casa dele às cinco horas da manhã.
  
Ela me mostrou o quarto (notei que o mesmo não tinha janela) e depois, saindo da casa, ela me indicou o banheiro. Perguntando se iria tomar banho, indagou se já tinha toalha. Respondi-lhe afirmativamente.
  
O banho foi uma desgraça: o banheiro imundo e a água, tirada de uma jarra com o auxílio de um coco de lata, era gelada. Não havia separação entre a área de banho e a bacia sanitária que não era de louça, porém de cimento, mais parecendo a boca de um formigueiro ou de um vulcão. Tremendo de frio saí do banho arrependido de tê-lo tomado. Por puro nojo, não enxuguei os pés na minha toalha, calçando as meias e os sapatos com os pés molhados (naquele tempo não existiam as sandálias de borracha, tipo havaianas que hoje eu uso para tomar banho em hotel).

Não aguentando ficar no hotel e porque estava com fome, saí para dar uma volta. Avistei uma luz forte saindo de uma casa e para lá me dirigi. Era uma "venda" típica do interior, tinha tudo. A luz forte provinha de um lampião "Aladim", a álcool,  pendurado numa das portas. Comprei um pacote de biscoitos "Maria", um guaraná "Fratelli Vita" (natural) e fiquei conversando com o proprietário da "venda" na calçada, debaixo do lampião.

Foi muito engraçado. Como o resto da rua estava às escuras e nós nos encontrávamos sob um forte foco de luz, logo vi aparecerem umas garotas para comprar uma besteira ou perguntar alguma coisa, só porque viam, de longe, um rapaz estranho prosando com o dono da venda.  Não demorou muito, estava eu conversando com um bando de jovens. Ao serem informadas de que seguiria para Triunfo no dia seguinte, perguntaram se o motivo de minha viagem era o "Baile dos Estudantes". Respondi-lhes que não, mas que com certeza estaria lá. Marquei nos encontrarmos na festa e segui para o hotel.
A dona do hotel me acordou às quatro e meia da manhã, conforme o combinado. Levantei da cama me sentindo péssimo, pela noite ter sido difícil, pois tive nojo dos lençóis e dormi vestindo a roupa com que estava e de sapatos, coberto com a toalha de banho. Pela madrugada, ouvi barulho de risos e carreiras pela casa. Escovei os dentes fora do banheiro externo, com o auxílio de um copo de água cor de ponche de mangaba. Quando olhei o banheiro à luz do amanhecer, arrependi-me de ter tomado banho nele na noite anterior.
  
Um duro pão crioulo, um pedaço de queijo de coalho borrachento e um caneco de café, este foi o desjejum servido. Não consegui engolir, tinha gosto de tudo, menos de café. Desisti do pão ao pegá-lo e abandonei o queijo na primeira mordida. Paguei o pernoite e segui para a casa de Antônio Lulu. No caminho fui comendo o que sobrara do biscoito "Maria" comprado na véspera.

Encontrei Antônio Lulu debaixo do caminhão verificando alguma coisa. Perguntou se já tinha tomado café. Com a minha negativa, pediu a um menino que nos espiava que trouxesse dois cafés. Ele trouxe dois copos tipo americano com um  café escuro e cheiroso,  bebemos e comemos dos meus biscoitos. Quando ele achou que tudo estava pronto,  partimos.
  
O começo da viagem foi como a continuação da ida até Flores, tudo poeirento e sem horizonte. Mas quando começamos a subir a Serra da Baixa Verde, a paisagem foi mudando paulatinamente até que numa curva vi, bem lá em baixo, a estrada na qual seguíamos e pude sentir o quanto estávamos subindo. O verde agora era constante, a temperatura bem mais fria e um nevoeiro de vez em quando nos envolvia. Pequenos riachos desciam pelas vertentes e inúmeras plantações de banana, café, goiaba, pinha e outras fruteiras apareciam junto a casinhas de pedra dos sítios; as cercas que dividiam os lotes eram também de pedra, formando um mosaico irregular mas bonito. Um cheiro de café recém-coado e de cuscuz chegava até nós, quando passávamos bem devagar pela porteira dos sítios. A dificuldade do velho caminhão de Antônio Lulu ao enfrentar a subida do Brocotó, da Serra da Baixa Verde, foi proveitosa para que eu apreciasse toda a plenitude da bela paisagem no frio amanhecer. 

Realmente, tinha valido a pena enfrentar tantas peripécias para ali chegar.
Antônio Lulu estacionou o caminhão próximo ao pátio da feira e me indicou o Hotel Baixa Verde, como o melhor da cidade. Agradeci-lhe a carona e segui na direção dele. Lá chegando, tive o desgosto de saber que não havia nenhum quarto disponível. A dona do hotel me disse que não haveria problema, eu tomasse o café da manhã que estava servido na mesa e fosse até o convento dos frades, com certeza, eles me hospedariam.
  
Fiz exatamente o que ela sugeriu, deixando minha mala sob sua guarda. O café estava ótimo, com muita fartura de macaxeira, ovos fritos, banana cozida, leite e pão assado. Caminhei, então, até o convento dos frades. Toquei uma sineta presa num portão engastado num arco de trepadeira de flores róseas (pandora ou sete léguas). Ao meninote que me atendeu, solicitei falar com um dos frades.

Depois de uma pequena espera numa sala fria, um frade apareceu. Contei-lhe toda minha odisseia o que o deixou muito interessado fazendo-me muitas perguntas e achando engraçado os meus percalços. Disse-me que poderia ficar no convento, mas com a ressalva de me recolher cedo, no máximo às vinte horas e que as refeições eu fizesse noutro lugar. Agradeci-lhe e retornei ao hotel para apanhar minha mala.
  
Para minha surpresa, fui recebido com a notícia de que um caixeiro viajante havia desocupado um quarto, o qual eu poderia ocupar. Retornei ao convento para explicar ao frade a mudança de plano.
  
Desisti de ficar no convento porque, além de já ter hospedagem garantida, durante o café da manhã, conheci um rapaz de nome Alexandre, hóspede como eu, namorado da filha do Juiz de Direito e que conversando, insistiu para que eu fosse com ele e a família da namorada para o Baile dos Estudantes. As meninas de Flores já haviam me falado dessa festa e, se ficasse no convento, não poderia aceitar o convite, uma vez que teria de retornar cedo.            
  
O frade me recebeu e entendeu o motivo, desejando sucesso nos passeios e na festa. Lembrou-me, porém, uma coisa muito importante, o ônibus de retorno para o Recife saía às quatro horas da manhã do domingo, bem em frente ao Hotel Baixa Verde onde me encontrava hospedado. Disse-lhe que já tinha a passagem, mas ele me orientou para confirmá-la com o motorista, também hóspede do hotel. Ao voltar para lá, fiz o que o frade recomendou e saí para, afinal, conhecer a cidade.
  
A primeira parada foi na feira que se estendia pelas ruas próximas da Igreja Matriz. Ela era muito sortida com frutas de todos os tipos, mas o que me chamou a atenção foi a imensa quantidade de sacas de café em grão e de rapaduras postas à venda. As pinhas eram imensas e não resisti, comprando algumas e comendo-as enquanto caminhava.
  
Encontrei Antônio Lulu e tive a alegria de ver uma fisionomia conhecida no meio da multidão. Dei-lhe minhas notícias e ele me indicou alguns lugares bons de conhecer. Passei a manhã passeando a pé pelos arredores da cidade e mais uma vez as casinhas de pedra e as cercas divisórias das propriedades fizeram do passeio algo bem diferente e bom de ver.

Na ladeira do caminho para a Paraíba, entrei para conhecer a casa das freiras do colégio Stela Maris (de frente ao convento dos frades); ali me foi informado seria instalado um hotel administrado pelas religiosas (futuro Lar Santa Elizabeth). No local funcionava um orfanato para meninas. Seu jardim era bem cuidado com inúmeros gerânios e as maiores margaridas que eu já havia visto na minha vida.

Caminhando sem rumo, subi uma íngreme ladeira numa entrada à esquerda no caminho da vila de Santa Cruz da Baixa Verde e cheguei a uma propriedade diferente das outras ao redor. Perguntei, na casa vizinha, de quem era e me foi  informado ter sido construída por uns missionários americanos e que estava à venda. Manifestei o desejo de conhecê-la e a vizinha disse para chamar na porteira, que alguém me mostraria.

Logo que bati palmas, apareceu um homem ao qual, mentindo, eu disse estar interessado em conhecer a casa para meu pai comprá-la. Sem nenhuma dúvida, ele me mostrou e, depois, toda a área da propriedade. Realmente, era muito interessante e com uma bela vista dos arredores. A casa era toda de pedra com uma lareira na sala, coisa inédita no sertão de Pernambuco. Seu jardim estava abandonado, mas duas grandes e belas árvores  me chamaram a atenção; fui informado de que eram cedros do Líbano.

Cansado e com fome, retornei para o hotel onde, depois de um banho gelado almocei. Não sei se pela fome ocasionada pela árdua caminhada, mas o caso é que achei a comida uma delícia. Tinha de tudo: feijão verde, feijão guandu, carne de sol, bode guisado, farofa de jerimum, galinha assada ou guisada, arroz vermelho e feijoada. De sobremesa, goiabada com queijo de manteiga. Depois do almoço saí na companhia de Alexandre para caminharmos um pouco e fazermos a digestão, nessa ocasião tive o prazer de conhecer d. Zélia Maia, esposa do comerciante Marçal Maia, quando entramos no armazém dele, para Alexandre falar com alguém.
  
Foi ótimo conhecer d. Zélia, ficamos amigos na mesma hora. Ela era uma senhora distintíssima, de uma grande elegância e uma delicadeza natural, além de ser muito inteligente. Até o seu falecimento no ano de 2000, continuamos amigos.  Com ela e em outras viagens, aprendi a conhecer melhor Triunfo e muito dos seus costumes. Seus bizarros lanches de abacate machucado com goiabada cremosa eram de comer gemendo.
  
Retornei ao hotel com a tarde já adiantada, sentindo minhas pernas cansadas da caminhada da manhã  e dormi até umas sete horas da noite, só  acordando com o chamado da dona do hotel para jantar. Esse foi quase a repetição do almoço. Depois, ficamos conversando na calçada, esperando a hora de ir para a festa.
  
Fazia um frio de rachar e uma neblina cobria as ruas dando à cidade um quê de irreal. Mais ou menos às nove horas, vesti-me para a festa, fiz a mala e paguei o hotel, pois estava com a intenção de emendar da festa para o ônibus, retornando ao Recife.
  
A festa foi ótima. No começo me senti meio deslocado, mas depois de algum tempo encontrei as garotas de Flores que me apresentaram suas amigas de Triunfo e assim, a festa começou a ficar boa. Nessa noite conheci algumas garotas triunfenses: Célia Novaes Leitão, sobrinha de d. Zélia Maia, Geraldina Timóteo e Tamar Barbosa.
  
Depois da meia-noite, a orquestra parou e houve um discurso, ao qual não prestei atenção. Logo após, o corte de um grande bolo (não tenho ideia do que estavam comemorando), Geraldina Timóteo teve um belo gesto de cortesia, atravessando o salão, sob o olhar de todos, com uma fatia de bolo para mim. Até o final da festa dancei e proseei com ela. Depois dessa noite passamos mais de três décadas sem nos ver, durante este período me tornei amigo do seu irmão Assis e de sua prima Diana. Reencontrei Geraldina em 2008 em Triunfo, numa festividade da Caravana da Saudade e reencetamos nossa amizade.
  
Às três e meia da manhã a festa acabou. Segui para o hotel com Alexandre e um grande grupo de moças e rapazes que iam naquela direção. A noite estava estrelada e o frio de rachar. Porém o mais interessante era que uma imensa mancha luminosa atravessava o céu e alguém lembrou ser aquilo a cauda de um cometa que estava aparecendo e que havia perdido a cabeça. Lembrei-me de ter lido nos jornais algo a respeito.
  
A viagem de retorno foi quase um sono só. Recordo de terem me acordado para almoçar em Arcoverde, mas quando retomamos o caminho, voltei a dormir. Acordei na parada de Caruaru, ficando desperto o restante da viagem.

Só retornei a Triunfo para passar alguns dias de férias anos depois, sendo já funcionário da Secretaria da Agricultura. Nessas ocasiões conheci e me tornei amigo dos agrônomos Adail Marinho de Moura, Moacir Alves de Oliveira, e do administrador rural Aluísio Bernardo, encarregados do Posto de Fruticultura, que funcionava no local do antigo Posto de Monta. Na função de agrônomos responsáveis pelo referido posto, Adail e Moacir frequentemente visitavam a área municipal e muitas vezes os acompanhei nas visitas aos agricultores, passando dessa maneira a conhecer melhor a microrregião da Serra da Baixa Verde, onde a cidade de Triunfo está localizada.

Anos depois este conhecimento facilitou bastante a minha execução do Mapa Turístico de Triunfo. Pintei em trinta e duas aquarelas iconográficas o seu conjunto arquitetônico, que se encontram reproduzidas e emolduradas nos apartamentos da Pousada Baixa Verde dos meus amigos Terezinha e Pedro Junior. Tenho orgulho de pertencer na companhia dos meus amigos triunfenses Assis Timóteo, Diana Rodrigues e Lúcia Maia à Academia Triunfense de Letras e Artes. Interpretei sem nunca ter sido ator, em duas películas cinematográficas dirigidas pelo triunfense Adriano Pádua, dois grandes expoentes da história de Triunfo: Manoel do Borges, no curta metragem TIRO NO PÉ e Carolino Campos (idealizador e construtor do Cine Teatro GUARANY), no Documentário  SERTÃO, SONHO E CINEMA

E tudo começou com uma viagem atribulada na adolescência.  

Por: Melchiades Montenegro Filho.




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