DOCES MULHERES REBELDES

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Literatura para você! Crônica, Contos e Poesias.

Maria Teresa Freire.


Quando ela sorria, o sol aparecia. Mesmo viajando em um dia nublado. Foi assim que vi a mulher ao meu lado. Às vezes, com um sorriso maroto, às vezes tímido, muitas vezes com um quê de sensualidade, mas sempre, com um sorriso encantador! 

Viajávamos para a casa de campo de minha família em uma carruagem fechada. Minha mãe nos esperava. Queria encontrar a mulher que eu havia escolhido para ser minha esposa. Sempre escapei das imposições familiares sobre com quem eu deveria me casar. Família isso, família aquilo. Tudo perfeitamente correto. Quem queria isso?  Eu certamente não. Eu queria quem eu amava, de tempos idos.

Eu a conhecia desde criança. Sempre a achei incrível. Era levada, sempre comandava as peraltices. E as inventava também. Todos a seguiam. Eu, inclusive, como um bobo encantado, apesar de ser mais velho. As nossas famílias tinham suas casas de campo próximas. Passamos nossa infância convivendo em tardes de brincadeiras, reuniões familiares, eventos sociais. As manhãs eram dedicadas às aulas curriculares com ótimos preceptores. Também aprendíamos artes, conforme nossos talentos afloravam: música, pintura, bordados para as meninas e esportes para os meninos. Todavia, alguns mostravam suas tendências em questão de estudos. Carolina, a arteira do grupo, lidava com a matemática maravilhosamente bem, como sua irmã, primas e amigas bordavam, pintavam e desenhavam. 

No salão em que uma delas tocava piano, Carolina sussurrava em meu ouvido: 

“ Joaquim (ou Quim, como preferia me chamar), eu vou passar mal e você me leva para tomar ar, certo? Assim nós escapamos dessa chatice”. Olhei para ela sério e disse: “você vai me arranjar confusão”.  Mas vamos assim mesmo, pois também estou ficando sonolento!” E lá íamos nós dois com a desculpa de que Carolina estava precisando de ar fresco.

A infância não foi eterna e chegou a fase em que nós, os rapazes, iríamos para o Colégio e depois a Universidade. Eu deveria me preparar para ser um excelente administrador, pois herdaria o título do meu pai, Conde, e todas as suas propriedades. Enfim, herdaria a sua fortuna. Que eu deveria administrar muito bem, pois queria que meu outro irmão e minhas duas irmãs também tivessem seus próprios recursos financeiros. Portanto, dediquei-me aos estudos com afinco.

Nas férias, quando voltava para casa, encontrava o grupo da infância. Com isso pude acompanha Carolina transformando-se em uma linda mulher. Além de tudo, inteligente e cada vez melhor em matemática. Tanto que passou a cuidar da contabilidade dos negócios do pai, que tinha menos propriedades, mas investia em empresas, inclusive em um estaleiro. Era uma contabilidade pesada que Carolina adorava fazer. 

Quando finalizei meus estudos universitários e voltei para casa, encontrei meu pai muito doente e minha mãe apreensiva. Meu irmão iniciara a Universidade e seria veterinário.

Tínhamos um haras e ele gostava de cuidar dos cavalos. Minhas duas irmãs preocupadas com meu pai, apoiaram-se totalmente em mim. Infelizmente, a saúde do Conde, meu pai, debilitou-se rapidamente e ele nos deixou em uma manhã fria, porém com sol brilhante. Parecia que seu falecimento não era para nos entristecer, mas perceber que estaria bem, onde quer que fosse, cuidando de nós como sempre havia feito. 

Eu assumi a responsabilidade do Condado, que vinha com o título e a administração das nossas propriedades. Meu pai com uma visão progressista nos deixou uma enorme fortuna que, apesar dos inúmeros benefícios que nos ofereceria, também acarretaria muito trabalho, sobretudo para mim. Portanto, eu estava quase o tempo todo envolvido na revisão dos documentos. Em uma das tardes de muito trabalho, Carolina entrou com uma bandeja com chá e os meus biscoitos favoritos. “Olá, senhor Conde!” Fala ela risonha. “que tal descansar um pouco? Fazer uma pausa, tomar o chá, espairecer?” Com uma doce firmeza, puxou-me pelo braço, fez-me sentar no sofá e cuidou de mim. “Ah! Carolina! Faça-me sempre isso!” Ela me responde com uma voz suave: “assim o farei. Conte-me o que o aflige.”

_ “Não é aflição. É mito volume de trabalho para me inteirar rapidamente”.

_ “Você dará conta. Feche os olhos e descanse. Eu cuido de você”.

Recostei-me no sofá, apoiei minha cabeça no ombro de Carolina e adormeci, aliviado com o calor e suave perfume do corpo dela.

Na posição de Conde, futuramente, eu precisaria de um herdeiro. Portanto, minha mãe começou a insistir para que eu me casasse e tratasse de ter um herdeiro (ou mais, conforme ela), a fim de que o nome da família continuasse. Também havia meu irmão mais novo como segundo herdeiro, mas não era isso o que ela planejava.

Neste período de luto, Carolina foi muito solícita com a nossa família, sobretudo com as minhas irmãs das quais ela era muito amiga. Dessa forma, ela foi participando da minha vida, esgueirando-se no meu pensamento, se alojando mais firmemente no meu coração e me fazendo apaixonar por aquela mulher cheia de vida, dinâmica, que ao chegar à nossa casa trazia o sol junto. Parecia que tudo resplandecia quando ela estava presente. 

_”Boa tarde, senhor Conde!” Ela passou a me chamar assim, não mais de Quim, para me provocar. E me provocava um sorriso benevolente e muito agradado. “Vim buscá-lo para um passeio. Sem recusas! Venha, venha!”

- “Já vou, já vou! Deixe-me ajeitar os papéis sobre a mesa. Também quero lhe mostrar as melhorias que pretendo implementar nas casas dos nossos trabalhadores”.

_ “Primeiro o passeio!” Ela insistiu com o sorriso que iluminava minha alma. Encaixou seu braço no meu e saímos.

Outras tardes de trabalho se seguiram. Não muitas, pois eu já havia decidido que teria uma conversa séria com Carolina em breve. Pois, o breve chegara junto com o início da primavera, o verde pujante se esparramando em nosso entorno, as flores começando a desabrochar. A época certa para dizer o que estava planejado na minha mente há muitos anos. Vesti-me com todo o esmero que o momento exigia. Fui cedo, pela manhã, para a casa dela. Ao chegar, ela veio correndo me receber, sempre sorridente e transparecendo feliz em me ver. 

_ “Você veio nos visitar cedo, dessa vez. Estamos terminando nosso habitual café da manhã demorado. Quer uma xícara de chá?”

_ “Obrigada, mais tarde, talvez. Agora quero conversar em particular com você.”

_ “Nossa, quanta seriedade!” Levou-me para o escritório do seu pai e pediu chá para nós dois.

_ “Carolina, sente-se no sofá, por favor”, eu pedi. Por causa do meu semblante sério, ela obedeceu sem titubear.

Ajoelhei-me em frente a ela e olhando nos seus olhos um pouco assustados, falei: “ sem você meu sol não brilha, as flores não desabrocham, nada tem graça e colorido. Você é parte de mim. Quero-a na minha vida, todos os dias, horas e momentos. Amo-a. Amo-a demais. Você aceita ser minha esposa para a eternidade?” 

Carolina ficou a me olhar com aqueles olhos doces e ficou quieta por segundos, que a mim pareceram uma eternidade. Abriu o sorriso mais deslumbrante que eu já tinha visto e disse: “amo-o com toda a força do meu coração. Quero ser sua esposa para a eternidade.”

Beijei-a longamente, com a plenitude do meu amor, porém envolvido na paixão que até agora eu mantinha sob controle. 

Com o som de vozes, fizemos uma pausa, os dois sem fôlego. Ao sairmos do escritório com os rostos afogueados, todos pararam e nos olharam curiosos. Anunciamos ao mesmo tempo: “vamos nos casar!”  Palmas e parabéns explodiram por todos os lados, da família dela e até dos empregados que estavam próximos. Daí em diante foi uma verdadeira roda-viva com os preparativos do casamento. A licença matrimonial já estava aguardando há algum tempo. 

E assim, apaixonados e totalmente entrosados, casamo-nos um ano depois da morte do meu pai. Apesar da tristeza causada pela ausência dele, todos celebraram. O palacete familiar no Rio de Janeiro retomou o seu esplendor. A festa do casamento criou um ambiente festivo como sempre era peculiar às festas em nossa casa, envolvida em uma agitação prazerosa que contagiava a todos.

Após as festividades do casamento, nossa vida foi se organizando de outra forma. Eu retomei a administração das propriedades. Carolina, irrequieta como era e muito inteligente, deu conta rapidamente de seus afazeres na direção da casa. Entretanto, ela queria mais incumbências. Principalmente o que gostava: a contabilidade. Eu estava bem assoberbado com o controle das propriedades: duas fazendas, uma delas com criação de cavalos; uma casa de campo com estufa de plantas e flores que eram o xodó de minha mãe; uma casa na praia para simplesmente relaxar e usufruir dos benefícios do mar e sol; quatro sítios que tinham criações de animais e plantações para alimentar todas as propriedades. Mesmo com a ajuda de uma firma de contabilidade, era necessário que eu acompanhasse todos os progressos ou não das propriedades. Com todo esse imenso trabalho, passei a apreciar a ajuda de Carolina na contabilidade dos nossos bens, supervisionando o trabalho dos contadores. Dessa forma, eu poderia me dedicar com mais atenção às necessidades de manutenção e melhoria das instalações e de outros negócios que tínhamos.

As pessoas se espantavam ao saberem das atividades da minha esposa e os advogados mais ainda quando Carolina tratava com eles sobre as questões contábeis. Ela memorizava todos os detalhes, sobretudo os resultados negativos. Colocava tudo nos eixos com firmeza, porém com certa dose de docilidade e simpatia que nem ousavam contrariá-la. Foi um exemplo de atuação feminina para a época em que vivíamos. 

Nosso casamento deu muito certo, em quase todos os aspectos. Tínhamos algumas questões que não concordávamos, mas um ou outro cedia um pouco e conseguíamos chegar a um acordo.  Esse entendimento firmou-se desde que éramos crianças. Eu a elogiava e acatava suas ordens nas brincadeiras que inventava. Ela respeitava minha opinião, atendendo-me em assuntos mais sérios.  Sempre trocávamos opiniões, aceitando nossos erros e celebrando nossos acertos. Posso dizer que éramos as pessoas certas para nós mesmos. Para uma convivência amorosa, sensual, todavia igualmente de amizade e companheirismo.  

Tivemos quatro filhos: um menino, duas meninas e por último, a rapa da panela como dizem, outro garoto. O mais velho, Henrique, seria o herdeiro principal, portanto estudou administração. Ajudava-me a cuidar do nosso patrimônio, inclusive aumentá-lo. O mais novo, muito arteiro, tornou-se um tenista talentoso, ganhador de vários prêmios nacionais e internacionais. Por conta de seus jogos e campeonatos, fazia a família toda viajar para assisti-lo ganhar em várias dessas importantes ocasiões. Éramos seus torcedores incondicionais. 

As meninas esbanjaram talento. Uma delas, Isadora, estudou Artes e desabrochou como uma artista plástica especializada em flores, inclusive estudou um pouco de botânica para capturar a essência das flores que pintava. Participou de diversas exposições em que foi premiada. Organizou várias exposições solo e coletivas. Sua pintura era expressivamente elogiada, originando a venda de seus quadros. 

Miranda, a filha que estudou Medicina, era igual à mãe. Fisicamente e com a mesma personalidade. Foi uma das primeiras mulheres a cursar a Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro. Naquela época, início do século XX, as mulheres pouco estudavam formalmente e muito menos trabalhavam, sobretudo aquelas que pertenciam à elite da sociedade. Nossa filha teve todo o apoio para dedicar-se à profissão, fazendo-o com tal afinco e devoção que conseguiu ser respeitada no meio médico, quase totalmente masculino. Felizmente, casou-se com um médico, que compartilhava esta dedicação à carreira. Juntos montaram um consultório muito bem aparelhado, atendendo às mulheres e crianças. A clientela era formada principalmente pela classe rica, mas reservaram parcela do seu tempo para atendimento gratuito às mulheres mais necessitadas.

As minhas filhas, com a mãe que tinham, não iriam se destacar em bordados, leituras, pinturas e fofocas em chá. Devo dizer que, às vezes, as três me enlouqueciam com a agitação que causavam, participando em atividades, reuniões, comícios, passeatas, tudo em defesa da emancipação da mulher e dos seus direitos de liberdade, escolha, trabalho, estudo, enfim de decidirem sobre suas vidas. 

Eu fui loucamente apaixonado pela minha esposa. Desde criança eu havia decidido que casaríamos, pois ela era exatamente a companheira que eu queria para minha vida. A mulher mais linda, arrojada e destemida que conheci.  Eu fui irrestritamente admirador das minhas intrépidas e talentosas filhas. Tive uma vida plena de movimentação, de sentimento familiar e de muito amor! 

Por: Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 
Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.



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