VIDA FALSA

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Maria Teresa Freire.


Reflito sobre a minha vida passada e as lembranças assaltam a minha mente. Volto a ser um menino de 10 anos até então despreocupado, preocupado com as tarefas da escola e em brincar com minha irmã e meu melhor amigo. Nossa vida em uma cidade pequena do interior era tranquila, sem novidades excepcionais, porém bastante agradável. Meus pais eram simples, mas tinham sabedoria para nos ensinar sobre os enfrentamentos das situações e problemas que surgem ao longo da nossa existência. 

Meu pai era ferreiro, havia feito curso profissionalizante para atender a demanda dos moradores da cidade que trabalhavam na área da agricultura e também para pequenos reparos de utensílios e ferragens em geral. Entretanto, ele não se restringia a esse tipo de trabalho. Muito talentoso, era um artesão excepcional produzindo peças artísticas e decorativas com ferro e outros metais, além de criar na prata joias diferentes e ousadas. Eu estava sempre com ele na sua serralheria e fui aprendendo tudo que ele fazia.

Minha mãe era uma florista muito dedicada, trabalhando diariamente no seu jardim, montando arranjos florais muito bonitos; como trabalhava com jardinagem, era chamada para montar jardins, além de ter encomendas de arranjos florais para várias ocasiões e eventos. Nossa casa apesar de simples, era toda enfeitada com flores as mais variadas. Vivíamos em um ambiente primaveril. 

Entretanto, meu pai foi vítima de uma doença grave nas vias aéreas superiores, em função da lida com vários metais, falecendo quando eu e minha irmã estávamos na fase da adolescência. Eu com 14 anos e minha irmã com 16; ela estava se tornando uma mulher muito bonita. Minha mãe faleceu no mesmo ano.  Foi vítima de uma reação alérgica ao pólen, que desencadeou a asma. A doença não foi tratada devidamente e as complicações ocasionaram a morte da minha mãe, contribuída pela perda do meu pai. 

Nessa época, chegaram à nossa cidade uns comerciantes que inauguraram lojas diversas, desde objetos de casa até roupas e calçados. Os moradores estranhavam o comportamento deles, mexendo muito com as mulheres, provocando os homens. Pequenas chácaras mais afastadas tiveram animais e objetos roubados. Até que apareceu um homem morto, esfaqueado, resultado de uma briga de bêbados, esclareceu o prefeito e os poucos policiais que haviam na cidadezinha. 

Os abusos contra os cidadãos continuaram. Uma mulher foi espancada pois não cedeu aos arroubos sexuais de um desses forasteiros. Na sequência apareceu uma adolescente morta, depois de ter sido ferida e estuprada. A situação estava muito grave e reforço policial foi chamado para investigação. Todavia, nenhum culpado era encontrado. Um chacareiro, que morava distante, também apareceu morto. A população estava em pânico. 

Nesse estado de pavor que acometia a todos, minha irmã foi acossada por um dos homens de fora quando voltava sozinha da escola e na luta para se defender ela o matou com a tesoura que levava na mochila. Várias tesouradas. Ela reagiu com desespero para se defender. Cheguei em seguida, como havíamos combinado de nos encontrarmos e decidi acobertá-la, apagando com sangue as impressões dela e deixando as minhas nas roupas do homem e em tudo em volta. Desapareci com a tesoura que também tinha minhas impressões digitais. 

Fugimos, pegamos o que podíamos dos nossos pertences. Por sorte, meu pai havia deixado uma boa quantia de dinheiro em casa (ele não gostava de bancos) o que facilitaria nossa fuga. Incendiamos a casa e desaparecemos da nossa cidadezinha. Após escaparmos, mudamos cor e corte de cabelo para não nos reconhecerem facilmente. Tomamos direções diferentes para despistar nossa fuga. Despedimo-nos com pesar, mas era necessário. Fomos para cidades grandes, em direções opostas, onde é mais complicado localizar as pessoas. Livramo-nos dos celulares. Mais nenhum contato entre nós dois e com qualquer outra pessoa. Realmente, desaparecemos.

20 anos depois, minha história continua. Eu assumi a identidade de outra pessoa. Logo depois da fuga, na cidade grande, eu fui atropelado e levado ao hospital. Na enfermaria havia outro homem muito mal. Ao ficarmos sozinhos depois de medicados e aguardando cirurgia para mim, eu consegui trocar meus documentos com os dele. Ele morreu como Nelson (eu) e eu sobrevivi como Norton (ele). 

A pancada na minha cabeça exigia intervenção cirúrgica e causou-me amnésia. Eu não lembrava do meu passado. Comecei a viver outra vida. Com o dinheiro que tinha montei um atelier e passei a trabalhar com serviços de ferraria para consertos variados; com meu talento natural e o aprendizado junto ao meu pai, criava obras artísticas decorativas e joias que agradavam a um púbico apreciador de objetos diferentes do comum. Assim era a minha arte. E eu. Ambos diferentes do comum.

Eu estava concentrado no meu trabalho quando minha esposa e filha pequena chegaram ao meu estúdio e me chamaram para sair. “Papai”, diz a pequenina, “vamos tomar sorvete? Está calor e a mamãe está de folga”. Eu não sou mais o menino Nelson, mas agora sou o artista ferreiro Norman, casado e com uma filha de seis anos. Minha mulher é advogada criminalista. O passado negro, havia ficado para trás, por enquanto, como eu sempre pensava. Seria mesmo?

Mantinha-me afastado das redes sociais. Dos holofotes. Nada de me expor. Muito menos fazer postagens pessoais e dos meus trabalhos. Eu queria me manter discreto para que meu passado não viesse à tona. Não queria perguntas sobre a minha vida, o meu trabalho, enfim, sobre a minha história. Principalmente, não queria prejudicar minha esposa e minha filhinha. Todavia, nada se mantém completamente em segredo. O meu passado também não. E foi assim que aconteceu. 

Queridos leitores, vocês saberão o que acontecerá na próxima publicação!

Por: Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 
Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.
Presidente da ALB - Paraná.



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