A Imprensa e a verdade Primeira Parte

1 Comments

Virginia Pignot

 

I-Introdução

O direito à informação sofre ataque.

Nunca na história da humanidade tivemos acesso a tantas informações e no entanto, nunca foi tao difícil distinguir a mentira da verdade, o fato da calunia.

“O papel do jornalismo é o de defender os valores centrais de uma Nação, a Constituição, a lei, os mais vulneráveis, a igualdade.” Luis Nassif (1).

Quando abandona esses valores para modelar a opinião pública em função dos interesses de seus financiadores, bancos, patrões dos grupos de mídia, o jornalismo comercial brasileiro vende sua alma ao diabo. 

Vamos percorrer neste artigo o contexto, causas e efeitos desta desregulamentação do jornalismo em relação à ética da profissão, e sua influência nefasta no campo societal. 

Em dois outros artigos abordaremos causas e consequências:

-jurídico-políticas 

-econômicas e uma reflexão sobre como remediar esse mau jornalismo que favoreceu, no Brasil, a eleição de um candidato com forte tendência autoritária, e pouco dado ao debate democrático. 

Concluiremos então sobre os mecanismos reguladores que podem dar o freio de arrumação necessário para evitar os abusos e desvios de função da imprensa.

Liberdade de expressão, direito à informação são valores importantes em uma sociedade democrática, valores atacados no Brasil e alhures há duas ou três décadas por um jornalismo de guerra.

II-Como o Jornalismo de guerra chegou ao Brasil

Para tentar vender jornais e revistas que perdiam leitores com o desenvolvimento das redes sociais, Roberto Civita, ex-patrão da revista Veja e da Editora Abril, importou ainda no final do século passado, o método usado por Murdock na Fox News, nos Estados Unidos: o órgão de imprensa elege um alvo tratado como inimigo, exerce linchamento, calúnias, notícias falsas contra este alvo, que pode ser uma pessoa, uma empresa, um grupo politico. Esse ataque provoca uma repulsa em massa da sociedade contra o alvo. Opinião pública que não teve acesso à informação, pois a imprensa não deu espaço a outras versões, ao contraditório ou ao direito de defesa.

No Brasil, esse discurso de ódio vendido é martelado em seguida pelos jornais televisivos, como o do JN da Globo, que toda semana mostrava e comentava a capa da Veja, e por muitos outros veículos de comunicação. 

1) Exemplos do jornalismo que cultiva o assassinato de reputação

-Ainda no século passado.

Podemos dar como exemplo o caso da Escola Base, onde o diretor dono da Escola foi preso supostamente por pedofilia, e a imprensa entrou de cara na versão do delegado para apresentar logo um culpado. Um laudo médico nos autos já dizia que podia ser uma simples assadura no ânus da criança, laudo omitido pelos jornais e pelo delegado que o prendeu. Não havia fatos, indícios, ou antecedentes no comportamento do diretor que justificassem a suspeita. Um jornalista investigativo (1) que trabalhava com economia percorreu os autos e levantou a questão da possível inocência do acusado no seu programa, pois uma questão o estava preocupando: “E se ele for inocente?” Um desembargador teve coragem de julgar pelos autos e não pela pressão da mídia que condena por manchetes. Quando saiu da prisão e foi inocentado, os pais já haviam retirado as crianças da Escola, e a imprensa não deu espaço para falar do erro que causou enorme prejuízo pessoal ao Diretor e à escola. 

E o caso do Bar Bodega, onde cinco rapazes pobres e negros inocentes foram presos e torturados durante um mês, acusados sem provas do assassinato de um casal, com a cumplicidade da imprensa.

São exemplos de condenações por manchetes de um jornalismo que não investiga, e que se alia a um delegado inescrupuloso para prender inocentes.

2) Como a imprensa vendeu sua alma ao diabo

Com a crise cambial de 1999, os grupos de mídia se endividaram se tornando mais dependentes de bancos de investimento.

A consequência dessa dependência se manifesta no alinhamento editorial dos veículos de comunicação aos interesses desses grupos privados, nacionais ou internacionais.

Como a “ética” destes grupos é o lucro, a questão do interesse nacional, do bem-estar, do nível educacional, etc da população brasileira não é com eles.

Isto explica porque a imprensa não ataca, por exemplo, a proposta de privatização dos Correios, empresa pública lucrativa, que emprega noventa e nove mil trabalhadores, com uma rede instalada que faz chegar carta nos locais mais recuados do país. Não ataca porque é um ótimo investimento para os seus anunciantes/financiadores. Um dos candidatos à compra é o gigante privado Amazon, que já foi objeto de denúncias pelo mundo, por não respeitar leis trabalhistas.

Outro exemplo em período anterior, de guerra cultural, foi o da condução do debate das cotas no Brasil. Uma ex jornalista da Globo testemunha: quando havia um debate televisivo sobre as cotas, havia três convidados ao debate que eram contra, e o quarto escolhido para fazer contra-ponto era alguém que não expunha os melhores argumentos à favor.

Este fato coloca “água no moinho” ao argumento de Jessé de Sousa (2), que afirma que “a elite do atraso” quer o povo ignorante e submisso para melhor manipulá-lo. 

Assim os ataques aos direitos adquiridos dos funcionários públicos, por exemplo, são apresentados como “reforma administrativa”.

Como a imprensa comercial não da voz aos sindicatos, operários, trabalhadores, a população pode não ser informada do perigo. O direito à informação, função constitucional, não está sendo exercido.

Neste contexto de imprensa defeituosa, uma resistência e oposição ao projeto só poderá ser organizada se houver sindicatos, grupos políticos, ou a imprensa alternativa para alertar as categorias. Caso contrário, os funcionários serão enganados, sem revolta.

Para evitar esse tipo de deturpação de um debate que deixa de ser publico para representar unicamente o interesse da “elite”, a idéia e o projeto de ter uma televisão pública de qualidade, como é o caso em vários países desenvolvidos, deve voltar à tona, apesar dos ataques que este projeto deve sofrer da Globo e cia.

No próximo artigo, abordarei as ligações perigosas entre a mídia e a justiça do espetáculo, e como a mídia desregulada interfere na politica e ataca a democracia. Até mais.

Referências:

1)Luis Nassif, A Crise do Jornalismo brasileiro, 16-4-21 Aula inaugural do Curso de Jornalismo e Artes da USP.

2) Livro A Elite do Atraso, Da Escravidao à Lava Jato, Jessé de Souza, Edt. Leya, 2017

Por: Virginia Pignot - Cronista e Psiquiatra.
É Pedopsiquiatra em Toulouse, França.
Se apaixonou por política e pelo jornalismo nos últimos anos.


You may also like

Um comentário:

  1. Excelente comentário, disse tudo. Por tudo isso é q temos um povo idiotizado, q não luta pelos seus valores, pelos seus direitos. Parabéns, pelo belo texto.

    ResponderExcluir