O REINO DE TRASÍMACO: O RELATIVISMO E A DEGENERAÇÃO DA NOÇÃO DE JUSTIÇA ¹

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José Francisco dos Santos.

 

Há alguns dias, assisti a um trecho de um debate na TV Jovem Pan, em que um dos debatedores - contrariando uma crítica feita por outro debatedor ao STF, que estaria sendo injusto - afirmou que a noção de justiça que estava implícita na crítica era romântica e irreal. Disse  que o que chamamos de justiça não passa da lei do vencedor.

Infelizmente não pude continuar assistindo e por isso não anotei o nome do debatedor nem do programa. Já enviei mensagem à Jovem Pan para me ajudar a identificá-lo, mas ainda não obtive resposta.

A afirmação me chamou especialmente à atenção, porque é praticamente uma citação literal do livro “A República”, de Platão.

Nessa obra, o filósofo grego se propõe a debater acerca da ideia de Justiça, e o diálogo (que, como sempre, tem Sócrates como personagem principal) se arrasta por dez longos capítulos, nos quais aparecem ideias emblemáticas, como o famoso Mito da Caverna, as partes da alma e as virtudes e a concepção de uma cidade ideal.

Mas no início do livro, quando a discussão está ainda esquentando, aparece o sofista Trasímaco, que interpela Sócrates e quer participar da discussão.

Na sua vez de falar, Trasímaco afirma que “o justo não é mais nem menos que a vantagem do mais forte”, e ainda que, “Cada governo promulga leis com vistas à vantagem própria” e como os governados são obrigados a obedecer a essas leis (e nisso consiste a justiça!), então a justiça é sempre a vantagem do mais forte. (PLATÃO – A República – Tradução de Carlos Alberto Nunes – Belém/PA: Editora Universitária UFPA, 2000, pp.66-67).

Ora, os sofistas são seguidores da máxima de Protágoras de que “o homem é a medida de todas as coisas”, portanto são os reis do relativismo. Sócrates, Platão e Aristóteles, os baluartes gregos da cultura ocidental, empenharam-se exatamente em demonstrar o contrário.

Do mesmo modo, célebres juristas romanos, como Ulpiano e Celso afirmavam que os preceitos do direito são viver honestamente, não ofender ninguém, dar a cada um o que lhe pertence, e ainda que é o Direito  a arte de distinguir o justo do injusto. Desse modo, um Direito sem uma ideia sólida de Justiça não poderia ser Direito, mas apenas um amontoado de regras que podem servir a qualquer tipo de tirania ou desordem.

Da tradição bíblica, aprendemos que a Justiça é a manifestação da ordem divina no mundo. Tomás de Aquino afirmou que há a Lei Divina, que governa e ordena todo o universo, a Lei Natural Humana, que é a manifestação dessa lei divina na nossa realidade específica e a Lei positiva, que provém da vontade humana. Esta última, no entanto, se estiver em desacordo com as duas primeiras, não exprime nenhum princípio de Justiça, igualmente não merecendo o honroso nome de Direito.

Ora, a filosofia grega, o direito romano e a Bíblia são as três fontes que formam a cultura ocidental, laboriosamente construída pela civilização cristã a partir dos cacos do Império Romano, nos reinos bárbaros que deram origem à Europa civilizada.

Ora, o mundo moderno se empenhou em descontruir essa tradição e nós estamos vivendo agora o resultado de mais de quinhentos anos de esforço ininterrupto de destronar Deus e colocar o homem no seu lugar.

Esse é o princípio fundamental de toda mentalidade revolucionária. A princípio, os filósofos racionalistas pretenderam colocar o ser humano como centro, no famoso “antropocentrismo”, tão exaltado no ensino médio pelos professores de história. A ideia é a de que a razão humana é suficiente para estabelecer não só o conhecimento da natureza, a ciência, mas também, e acima de tudo, os princípios morais e o fundamento das leis. Essa mentalidade é regada por intensa propaganda (falsa, evidentemente) acerca da incompatibilidade entre religião e ciência, o que contraria as evidências históricas acerca da origem e do desenvolvimento da ciência.

Racionalistas, humanistas, contratualistas e positivistas construíram o arcabouço que hoje fundamenta nossa política e nosso direito, tendo como ideia basilar o “Estado laico”, ou seja, a não interferência da religião em assuntos políticos.

Ora, estamos tão acostumados a pensar que isso é uma coisa absolutamente correta e natural que não nos damos conta de que ela encerra uma aberração: a autossuficiência humana, que deixa de reconhecer, venerar e obedecer à Lei Divina. Isso agora é sinal de pietismo, fanatismo e superstição. 

Mas, ao contrário, trata-se de obedecer ao ensinamento do Mestre: a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Ora, a ordem moral não pertence a César, nem mesmo aos súditos de César reunidos em assembleia.

A princípio, pode parecer que a razão humana pode dar conta do recado, mas os limites da razão começam a aparecer e as controvérsias de interpretação, idem.

No campo do Direito, o chamado “positivismo jurídico” vinha se esforçando, desde o século XVII, com Thomas Hobbes, na Inglaterra, a colocar nas mãos do Estado a exclusividade de dizer o que é ou não o Direito, contra a maciça e milenar tradição jurídica de dar à tradição e aos costumes a proeminência na produção das normas legais.

Hans Kelsen, no século XX, um dos mais radicais positivistas jurídicos, afirma que Justiça não pertence ao âmbito da ciência jurídica, mas é um conceito moral. Ao jurista cabe apenas definir o que é legal, não o que é justo. 

Novamente, é pensável que, sob leis razoáveis, o aplicador do Direito pode mesmo simplesmente de ater apenas a aplicar a norma. Mas a experiência mostra que a questão é bem complicada. O próprio Kelsen, judeu austríaco, teve que fugir da Alemanha nazista, e sentiu na pele o que significa ter que obedecer a uma lei injusta.

Mas nossa dificuldade de aprender com o passado é gritante.

A dita Constituição cidadã, de 1988 parecia ter nos colocado no patamar de democracia plena. Recentemente, nos meios universitários e jornalísticos, o presidente da República e os militares eram colocados como ameaças ao sistema democrático.

No entanto, as gritantes violações do Direito e da Constituição têm partido da nossa Suprema Corte, com decisões aberrantes. O STF, que deveria garantir o cumprimento da Constituição, age como um pai que estupra a filha. As contradições desse tal inquérito da “fake News” são tão gritantes, que um estagiário de segunda fase de Direito poderia enumerá-las.

E o curioso é que os ditos constitucionalistas, defensores da democracia e dos direitos humanos não dizem uma palavra. OAB, CNBB, imprensa, artistas “descolados”: todo mundo ignorando os desmandos dos ditos “iluministros”.

E aí, fechamos o círculo: o senso de justiça está desaparecendo. Justiça está se tornando, nesse reino do relativismo, apenas o que interessa ao grupo de detém certo poder e pretende ter o poder absoluto. O relativismo foi sendo implantado nas nossas cabeças pelos professores de ensino fundamental e médio, que incitam os alunos a terem opiniões sobre tudo, até sobre os assuntos dos quais não entendem absolutamente nada, pelos intelectuais e artistas, que nos incitam a décadas a contestar por contestar, a desejar a desordem, a sermos uma metamorfose ambulante.

E, no frigir dos ovos, os representantes dessa contracultura já estão perdendo o medo de afirmarem que não acreditam mesmo no sentido da Justiça. Ora, se a justiça é a vantagem de quem vence, então o processo está se encaminhando para o gran finale.

Quando a desordem estiver estabelecida, alguém virá com força e imporá uma Nova Ordem. E nós já não teremos mais argumentos para dizer que suas decisões são injustas. Afinal, como todo o resto, a justiça é relativa, é apenas a vantagem do mais forte. É o reino de Trasímaco. 

Estamos vendo o esforço gigantesco de dois mil anos, empreendido pelas melhores representantes da raça humana, serem atirados pelo ralo, pelo argumento tosco dos antigos sofistas, de que somos a medida de todas as coisas.

Não há como vencermos essa batalha sem recolocarmos Deus no seu devido lugar, reconhecermos sua soberania e nos submetermos aos seus Mandamentos. 

Nós não somos a medida de todas as coisas. Aquele primeiro sofista, que afirmou que seríamos como deuses, se fizéssemos as coisas do nosso modo, estava mentindo, aliás, inventando a mentira. 

Nossa divindade fajuta está nos levando a passos largos para o abismo.

¹ Alocução apresentada na Assembleia do GRUPIA, em Brusque/SC, em 09/06/2022.

Por: José Francisco dos Santos - Prof. Zezinho, consultor do GRUPIA. Graduado em Filosofia
pela UNIFEBE, Especialista em Fundamentos da Educação pela FURB, Mestre e Doutor em
Filosofia pela PUC/SP, é professor do Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE,
Faculdade São Luiz e Faculdade Sinergia.





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