O LEGADO DO PAPA FRANCISCO

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Virginia Pignot.


Qual o principal legado do Papa Francisco?

O Papa Francisco faleceu na segunda-feira 21 de abril 2025, de um acidente vascular cerebral, aos 88 anos de idade. Foi o primeiro papa jesuíta, do Hemisfério Sul, e da América Latina, “periférico”.  No início do seu pontificado no Vaticano ele disse que vinha “do fim do Mundo”. E quando interrogado por um jornalista o que um Papa “quase do fim do mundo” poderia trazer, ele citou a filósofa argentina Amélia Podetti: “A realidade é melhor vista dos extremos que do centro; à distância a universalidade é melhor compreendida.”

Visitou prisões, lavou os pés de prisioneiros, disse que todos podem errar, se arrepender, pedir perdão; visitou campo de refugiados da guerra na Itália e foi abençoá-los e felicitá-los pela coragem de querer proteger seus filhos, deixando para trás tudo que haviam construído e que amavam. Convidado do Congresso americano em presença do agora ex-presidente Biden criticou a venda de armas, que tem alimentado conflitos, causando sofrimento e destruição.

Francisco mostrou, encarnando o papel do apóstolo que divulga o evangelho, que o Vaticano não pode olhar o mundo só do ponto de vista da riqueza, dos poderosos. Francisco veio nos lembrar que o cristianismo começou na simplicidade dos espaços periféricos, e não em suntuosas catedrais.

Elementos da sua biografia

Filho de pai italiano que deixara a Itália fascista de Mussolini, e de mãe descendente de italiana, ele cresceu em um ambiente familiar extremamente católico. Ordenado sacerdote em 1969, Bergoglio destacou-se por sua humildade e proximidade com o povo. Foi professor, reitor, e consagrado arcebispo de Buenos Aires em 1998.

Em 13 de março de 2013, foi eleito o 266° Papa da Igreja Católica, escolheu o nome de Francisco em referência à S. Francisco de Assis. Ele foi o papa que esteve mais próximo das lutas do povo simples. Criticou a má distribuição de renda, o fato que 80% da riqueza se concentrasse nas mãos de 20% da população, criando multidões de “descartados”.

Defendeu os “3Ts”: Terra, teto e trabalho, como direitos básicos e sagrados para uma vida digna.

O Vaticano votou, e o papa Francisco autorizou, a benção de homossexuais.

No domingo de páscoa, sua última fala pública aos fiéis foi a benção, seu discurso foi lido por um assessor. Nele o Papa denunciou os conflitos pelo mundo, especialmente a situação humanitária dramática e ignóbil em Gaza, disse que não é possível haver paz onde não há liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, alertou para o preocupante crescimento do antissemitismo no mundo. Depois passeou 15 minutos no Papamóvel, acenando para o povo. 

Seu legado não é memória, é direção

Para Gabriel Vera Lopez, entrevistado na Rádio Brasil de Fato, a igreja de Francisco se voltou mais para as pessoas, para os ensinamentos do revolucionário que foi Jesus. Se interessou pela preservação do nosso planeta, criticou métodos extrativistas que provocam doenças e destruição do meio ambiente, e legisladores que autorizam estes métodos nocivos. Todos nós participamos a esta poluição, se deixamos voar um saco de plástico, por ex. que pode acabar no tubo digestivo de um animal na água ou no campo, podendo provocar a sua morte. Ele dialogou com outras religiões, com laicos, com agnósticos, com sindicalistas, movimentos sociais, indígenas que também lutam por justiça social e contra a desigualdade, por uma economia inclusiva. 

Criticas à igreja ou ao papa, para só não falar “das flores”

O catolicismo acumulou riquezas, ocupou espaço e poder durante muito tempo junto ou em concorrência com o poder político, defendendo principalmente pautas morais de conteúdo repressivo. Mais recentemente Papas que antecederam Francisco atacaram a teologia da libertação, o movimento de Padres operários, provocando o afastamento da igreja católica das camadas mais pobres da população. Ouvimos críticas também sobre a não modernização de ritos ecumênicos. Que as missas podem ser “chatas”, com linguagem pouco acessível, mesmo se existem belas excessões.

Estes fatores contribuíram para o afastamento de fiéis, para a implantação dos evangélicos, das igrejas pentecostais. 

A revista semanal francesa Le Nouvel Observateur publicou um artigo satírico sobre a procura de um novo Papa. No perfil do suposto anúncio para o cargo, o jornalista enunciava “apesar de não ter vida sexual, a pessoa que ocupa o cargo deve se ocupar de regrar a vida sexual daqueles que têm uma; ele deve se esforçar para produzir ou fomentar a crença em um ser sobrenatural criador do mundo, onipresente…”. Lemos uma crítica dos progressistas (que pode ser elogio por parte dos conservadores) ao fato que a igreja não mudou nas controvertidas questões da contracepção, da possibilidade de aborto legal, ou do casamento entre homossexuais.

“Seu pecado foi ter ousado recolocar o cristianismo no caminho da compaixão”

Em artigo O evangelho segundo os pobres… no jornal ggn por you tube, Reynaldo Aragon e Sara Goés denunciam: “Francisco foi alvo de uma sofisticada máquina de desinformação e difamação articulada por ultraconservadores, os novos exércitos digitais do neofascismo global. A extrema direita o chamou de comunista, a mídia o silenciou, e os fundamentalistas religiosos o odiaram. Desafiou a ordem Global e teve imagem apagada.” Pessoalmente, eu só procurei me informar sobre o Papa agora, e para mim foi uma descoberta muito rica me inteirar sobre sua vida e sua obra. No entanto, eu leio muito e assisto emissões para escrever meus artigos, e realmente não tive acesso espontaneamente a conteúdos sobre o papa, antes de procurá-los agora ativamente, o que poderia corroborar a denúncia de “silenciamento”. Aliás, aconselho o documentário de Wim Wanders, Papa Francisco, um homem de palavra, disponível na Netflix e outras redes distribuidoras. 

A velha mídia o reduz a “líder espiritual gentil”

Continuando com os autores citados acima, “A velha midia o reduz ‘à voz do diálogo’, omitindo deliberadamente seu vigoroso enfrentamento ao sistema financeiro global, suas duras críticas ao apartheid israelense e sua incansável denúncia das guerras, da desigualdade e do colonialismo. Apagam assim sua aliança com os povos do sul e com líderes populares como o presidente Lula, uma aliança que unia fé e política em torno da justiça social, da soberania e da autodeterminação dos povos. Ao moldá-lo em gesso, como um santo inofensivo, tentam sepultar com ele a potência de um evangelho que desafia as estruturas de dominação.”

Trabalho sacerdotal: fazer as pazes e o censo do humor

Nos seus encontros com famílias, o Papa evoca o fato que nas famílias pode haver brigas, pratos quebrados… Ele aconselhou que se possível não fossem dormir sem fazer as pazes, e eu acrescentaria, quando há amor e respeito. 

Ele dizia rezar todo dia a oração de um santo, São Tomas More, que tinha muito senso de humor:“Dá-me senhor, uma boa digestão, e algo para digerir...”

No seu trabalho sacerdotal aconselhou uma pessoa a se olhar no espelho e rir-se dela mesmo: “Pede ao senhor, a capacidade de rir”, porque lhe faltava o censo de humor. E acrescenta: “o censo de humor humaniza muito”. 

Seu legado não é memória, é direção. Belo texto de jovem que encontrei nas redes sociais:

“Hoje o mundo silencia pela partida de uma voz

A partida de uma voz que por mais de uma década, enfrentou o barulho dos poderosos,

Denunciou o veneno de uma economia que mata

O Papa foi a consciência incômoda de um sistema doente

Foi coragem num tempo de covardes

Em 2015 ele ergueu a voz em nome do planeta Terra, dos pobres, das futuras gerações, expôs a lógica perversa do descarte.”

A economia de Francisco

No mundo dirigido pela mão invisível do “Deus Mercado” financeiro, cada vez mais destruidor, injusto e desigual, o Papa Francisco convocou todos que aspiram a uma economia mais humana à ação. 

Ele contatou e/ou promoveu encontros entre economistas, agricultores, indígenas, cientistas, chefes de Estado, sindicalistas, catadores de lixo...Com o objetivo de transformar uma economia que mata em uma economia de vida, promovendo uma ecologia de amizade com o meio ambiente, a financeirização inclusiva e o bem comum. Por exemplo, substituir o desflorestamento e plantação de alimentos para rebanhos que degradam o meio ambiente (e só beneficiam grandes empresários do agro, digo eu), pela exploração ecológica de recursos naturais, que permitem a preservação da floresta e meios de subsistência para as populações locais. 

Construiu-se assim um plano de transformação da economia a serviço das pessoas, um basta a exclusão. O amor à humanidade e não ao lucro. Outro exemplo que se aproxima da chamada economia de Francisco: sistemas ou planos financeiros de economia solidária são criados, como o Finapop, ou a captação de recursos pelo MST para aumentar e melhorar a capacidade de plantio de arroz biológico, por exemplo. Nestes planos, a finalidade primeira do dinheiro aplicado é a de ajudar à realização de um projeto, e não a busca desenfreada por lucro.

Como dizia o jovem brilhante no TikTok: “A voz dele se cala, mas seu legado ressoa como um trovão. Agora é com a gente, na ousadia de cada jovem a recusar a herança de um sistema que está quebrando o equilíbrio do planeta. Que a economia de Francisco não morra com ele.

Descanse em paz, Papa Francisco.”

Por: Drª Virginia Pignot - Cronista e Psiquiatra.

É Pedopsiquiatra em Toulouse, França.

Se apaixonou por política e pelo jornalismo nos últimos anos. 

Natural de Surubim-PE



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