TEMPOS VIVIDOS

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Maria Teresa Freire.

Ao olhar pela janela, observo o jardim repleto de flores de diversos tons. A primavera chegou mais cedo, parece-me. Com ela, o perfume misturado que paira no ar, resultado de tantas flores que, plantadas lado a lado, formam um encadeamento de cores que ofusca a vista, inebria a minha respiração e me transporta para o passado. 

Ao alternar alegria e dor, por fim raiva e revolta, chega à minha mente o período que me assola o pensamento, continuamente. 

A vida é uma incógnita, mesmo no dia seguinte. Leva-nos por caminhos em que nunca pensaríamos passar. Deixa-nos incertos sobre o que virá. Surpreende-nos, em todo momento, com os desdobramentos inesperados, com as curvas sinuosas, com as subidas íngremes, com as descidas perigosas. Assim vamos aceitando cada dia que transcorre, cada problema solucionado, cada alegria vivida, cada conquista sofrida, cada vitória celebrada. A vida é mesmo um presente. 

Há milênios, parece-me agora, conheci um homem encantador e charmoso pelo qual me apaixonei. Em uma tarde agradável de primavera, experimentava com minhas amigas as novidades dos cafés gelados. Até então, acostumada com o líquido escuro e quente bebê-lo frio e até gelado era uma sensação de sabor bem diferente. Envoltas em nosso divertimento nem reparamos que alguns rapazes nos observavam. Ao sairmos, um deles veio em nossa direção e me abordou diretamente.

“Posso me apresentar, senhorita?” 

Paramos surpreendidas e eu respondi, não querendo parecer mal-educada: “Sim, pode”. E ele respondeu: “meu nome é Heitor e eu gostaria muito de conhecê-la melhor. Poderíamos nos encontrar aqui, amanhã? Para um café e uma conversa”. Hesitei com a investida direta, mas aquele homem bonito e risonho aguçou minha curiosidade. “Podemos sim. Às 17 horas está bem para você” perguntei. Ele replicou com um sorriso largo: “com certeza, está ótimo! Espero-a amanhã, então. Você virá com certeza?” Ele me questionou, sério. “Sim, eu virei, com certeza”. Olhei firme para ele como se quisesse corroborar com a minha sinceridade. Ele novamente sorriu e eu me despedi, afastando-me com as amigas.

Senti-me acalorada e agitada. “Você foi audaciosa em aceitar, Heloisa”, exclamou uma amiga. “E dá para recusar o convite de um homem tão sedutor? Só o jeito dele me olhar já mexe comigo”.

O primeiro encontro aconteceu e foi muito promissor. Nós sentíamos uma atração um pelo outro. Encontramo-nos várias vezes depois. Eram momentos agradáveis, prazerosos e, ouso dizer, sedutores. Assim foi uma conexão inicial forte, uma sedução de um lado e do outro. Parecíamos o par ideal. Não só na aparência (para falar a verdade, éramos os dois bonitos), mas porque quando estávamos juntos, ríamos, conversávamos animadamente e partilhávamos quase todas as nossas atividades. Os encontros e os compromissos se intensificaram. Passamos a namorar. Cada vez mais apaixonados e conectados.

Apresentei-o à minha família e todos se encantaram com ele. Meu pai, fazendeiro de café no estado do Rio de Janeiro, gostou do jeito simpático e de fácil relacionamento de Heitor. A conversa entre os dois fluiu muito bem. Heitor explicou que havia estudado Administração e que estava cuidando dos negócios de um primo, porém não muito satisfeito. Não tinha autonomia para incrementar novos processos administrativos a fim de alavancar as atividades do primo, cuja mentalidade para negócios era meio atrasada. Meu pai aproveitou a deixa e convidou-o para gerenciar o grande armazém que tínhamos, onde era vendido o nosso café, no atacado e no varejo, assim como de outros fazendeiros da região. O convite foi aceito e combinaram que no prazo de um mês, depois de cumprir o aviso prévio para a empresa do primo, começaria a trabalhar no Armazém. 

O genro ideal. Solícito, agradável, amoroso com a filha e interessado no negócio do café. Dessa forma pensava meu pai e torcia para que nosso namoro avançasse apesar da minha juventude (18 anos) e o futuro marido (como ele queria) 10 anos mais velho. Pensava meu pai que seria um marido para cuidar de mim também. Eu era filha única e minha mãe havia morrido há alguns anos. Meu pai tinha medo de me deixar sozinha. E sempre pensou em um casamento para mim que, além de amor também me oferecesse cuidados e segurança.

Alguns meses depois, com tanto amor e paixão que nos assolava, casamo-nos. Uma festa bonita, detalhadamente preparada, com muitos convidados, foi organizada na sede principal da nossa maior fazenda, com decoração inspiradora, buffet exclusivo, música agradável de uma Banda popular. Um sucesso que perdurou tarde e noite! Festa de casamento, divertimento elegante e acolhedor para todos os convidados. Tarde da noite uma serenata embalou nossa noite de núpcias, na mesma fazenda, onde ficamos somente nós dois, atendidos por dois empregados. Foi um dia e noite memoráveis. De amor inebriante, paixão avassaladora, de entrega total de duas pessoas verdadeiramente apaixonadas.  

Passamos uma semana em lua de mel, em uma praia paradisíaca. O sentimento amoroso e sensual se intensificou. Demos vazão aos nossos desejos e fantasias, com erotismo a flor da pele. Ao retornarmos, a vida de afazeres nos aguardava. Heitor retomou seu cargo de administrador com mais entusiasmo. Eu continuei a ajudar meu pai n administração das duas fazendas de café, sobretudo na relação com os funcionários. Também me dedicava à minha arte de cerâmica, criando peças originais que eram elogiadas e vendidas no nosso Armazém, conforme a pessoas encomendavam. 

Nesse clima de felicidade, os anos se passaram.  Entretanto, para que fosse tudo perfeito, nos faltava filhos. Eu não engravidava. Após consultas com especialistas, não foi comprovado que fosse problema meu. Heitor dizia que faria seus exames, todavia não arranjava tempo por causa do grande movimento do Armazém. Também fazia várias viagens, cada vez mais, por conta dos negócios. Eu insistia para ir com ele, mas sempre dizia que seria uma viagem aborrecida para mim, que não teria tempo para me fazer companhia e que ele ficaria preocupado comigo e não enfocaria na transação comercial a ser estabelecida. 

Meu pai acreditava que Heitor estava se dedicando e se empenhando para expandir nossos negócios. Concordava com meu marido em aumentar o Armazém e construir um espaço para expor e vender arte. A começar com minhas peças de cerâmica e também com produtos de outros artesãos. Tínhamos vários deles muito talentosos. Começou os contatos com um arquiteto amigo nosso para projetar essa nova ala. Seguiria as linhas básicas do Armazém, mas com um toque artístico para hospedar as obras de arte adequadamente.

Em uma dessas viagens ele não voltou. Sofreu um terrível acidente de carro e morreu instantaneamente na colisão de frente com um caminhão. Ele invadiu a pista contrária em uma curva perigosa e o impacto provocou perda total do carro e seu falecimento. Eu havia preparado um jantar especial quando o chefe de Polícia e meu pai chegaram a minha casa. Ao vê-los pressenti que não seria boa notícia. Ao me contarem, com muito jeito e cautela o ocorrido, tive um choque e fiquei totalmente aturdida, perdendo a noção da realidade. O médico foi chamado para me atender. Receitou-me calmantes e descanso. No dia seguinte, controlando o golpe sofrido, meu pai veio conversar comigo. Heitor não estava sozinho. Havia uma mulher no carro que ficou gravemente ferida e foi levada ao hospital mais próximo. Outro golpe! 

Meu pai foi ao hospital saber notícia da mulher. Conseguiu conversar com a irmã dela que estava como acompanhante e descobriu que eram amantes há mais ou menos dois anos. Ele dizia que se divorciaria da esposa para casar com ela. Os advogados de meu pai iniciaram uma pesquisa sobre os passos do Heitor e outras situações constrangedoras para mim vieram à tona. Aquela não era a primeira amante que ele tinha. Com seu comportamento ardente e atraente não se contentava com a esposa (ou seja comigo) e nas viagens procurava companhia de outras mulheres. Também foi descoberto que ele havia comprado uma casa para a mulher acidentada e que veio a falecer dias depois em virtude dos graves ferimentos. 

Meu pai e seu contador foram verificar a contas do Armazém. Praticamente zeradas. Heitor usava o dinheiro do Armazém para sustentar suas amantes. E tinha dívidas também. De jogo. Os credores logo bateriam à nossa porta. Como pagar tudo e ajeitar a finanças do Armazém? Salários de funcionários atrasados. Pagamentos para os outros fazendeiros também. Meu pai teria que assumir e honrar todos os compromissos com as pessoas. 

Que caos na minha vida! Que homem era aquele, encantador, bonito, charmoso que me amava mais que sua vida (isso dizia ele!). Que mentira deslavada. Acima de tudo usando o nosso dinheiro para bancar farras, mulheres e jogatina. Durante sete anos ele foi um marido amoroso. Nos últimos três anos ele parecia mais distante. Mas eu culpava o excesso de trabalho. Na realidade, ele começou a viajar com mais constância, uns três anos depois do nosso casamento. Estava cansado da rotina do casamento, da mesma mulher, do mesmo sexo. Precisava de novidade. Eu não me dei conta disso. 

Entreguei-me ao desespero, à dor da falta do amor verdadeiro, da falsidade e da traição. Os meses foram passando, eu alimentando aqueles sentimentos ruins. Eu vivia dentro de casa, deprimida, somente trabalhando com a cerâmica. Meu pai preocupado com a minha saúde e bem-estar, veio conversar comigo: “Heloisa, estamos ajeitando toda a situação caótica que o Heitor criou. A família da mulher falecida ficou com a casa, simples e pequena. Não nos fará falta. Aos credores das dívidas de jogo estamos pedindo provas para fazer qualquer pagamento. Não pagaremos o que não for comprovado. Os cafeicultores que vendiam para nós estão sendo pagos aos poucos. Mas, não deixaram de colocar seus produtos no Armazém, em forma de consignação. Ao honrar nossos compromissos com eles estamos restaurando a confiança que tinham na nossa parceria. Estão sendo bem compreensíveis liderados por um fazendeiro novo na região e novo na idade também. Ele acalmou os ânimos e está nos apoiando. Ele vai sempre ao Armazém. Comprou uma de suas cerâmicas  disse que gostaria de conhece-la. Minha filha, quando você sairá desse desânimo? Quando reagirá? Você acabará doente. Preciso de sua ajuda para administrar as fazendas. Estou exausto cuidando de tudo.”

Olhei para o meu amado pai e notei seu cansaço. Ele não merecia nada daquilo e muito menos resolver tudo sozinho. 

“Pai querido, meu verdadeiro amigo, vou reagir. Por você. Farei aos poucos, mas serei persistente. Pode contar comigo. Eu preciso reagir. Um homem que me enganou não merece meu choro e meu sofrimento. Na realidade sinto raiva dele por ter feito o que fez! 

Eu reagirei!” 

Por: Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 
Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.



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