A LUTA POR SEU ESPAÇO

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Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 
Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.


Começo a minha história pelo final. Estranho, não? Como assim, começar pelo final? Então, não é começar. Seria finalizar. Mas, é necessário assim fazer para que faça sentido todo o conteúdo seguinte.

Tenho uma neta famosa. Artista plástica e designer gráfica. Destacou-se na Universidade e ganhou uma bolsa para fazer pós-graduação na área de Artes Gráficas em uma Instituição parisiense, onde também teve excelente desempenho por sua criatividade e habilidade.  Com isso, foi convidada a organizar cursos de extensão e desenvolver projetos para editoras, criando capas e ilustrações para livros. Suas pinturas em óleo sobre enormes telas também chamaram a atenção de galerias na Europa, sendo convidada para expor individualmente e em exposições coletivas. Além de sua extrema competência profissional, é extraordinariamente linda, alta (1,82m), magra e elegante (elogios comuns de avó!) Tudo isso naturalmente, sem esforços ou sacrifícios. É descendente de uma princesa Masaai, tribo do Quênia. Ela é negra. E eu sou branca! Como explicar isso? 

Essa história começou há muitos anos, quando fui para África com uma amiga, que trabalhava em uma empresa de Turismo Ambiental, para participar de um congresso. Sabedora do meu interesse pelo continente africano, ela insistiu que eu a acompanhasse. Tivemos oportunidade de conhecer as lendárias paisagens africanas, especificamente as quenianas e participar de safaris. Naturalmente, o safari estava programado para nós duas. Customizado. 

O guia, um americano charmoso (morenos de olhos castanhos!) cujos pais tinham vindo para a África há alguns anos para desenvolver serviço social voluntário. E aqui Edward Townsed permaneceu mesmo depois que eles voltaram para os EUA. Ed, como era chamado, conhecia o Brasil e havia passado uma temporada no país, na Amazônia e cercanias para conhecer nosso famoso meio ambiente com suas riquezas de flora e fauna e possibilidades de intercâmbio turístico. Até aprendeu um pouco de português. Entretanto, a saudade da savana africana foi mais forte e retornou ao Quênia. 

Enquanto lá estávamos, os safaris se repetiam, logo cedo para ver alguns animais e à noite para acompanhar outros. Até que comentei com Diva (a amiga): “não acha estranho tanto safari?” Ela respondeu: “estranho é você não ter percebido que ele quer estar na sua companhia, não sabe como agir, então inventa desculpas para os safaris!” Surpresa, fiquei pensando sobre o que Diva havia comentado. E para confirmar, recebi convite para jantar naquela noite. Agradável! Companhia e conversa. Homem simpático, educado e sedutor (além de bonito!), diferente do guia alerta que cuidava da nossa segurança. Nos dias seguintes foram almoços, passeios e jantares. E a conexão entre nós se formou forte e com muita atração. 

Até que chegou uma conversa séria. Muito séria. Um pedido de casamento. A justificativa era o amor à primeira vista (sem ser conto de fadas) e um entendimento perfeito entre nós dois. Verdade! Avisei minha família do casamento, mas mesmo assim não houve tempo viável para virem.  O casamento precisava ser rápido; estava grávida. E assim foi  feito.

A gravidez foi tranquila, até o oitavo mês. Ed saia frequentemente para os safaris contratados e às vezes passava dias fora. Eu fui me habituando com suas ausências; tinha como companhia uma moça que cuidava da casa, um garoto para cuidar do jardim e outro da fazenda junto com Ed; às vezes ia com ele para a savana, outras ficava para cuidar dos animais. Entretanto, no ultimo mês meus pé começaram a inchar muito e eu não me sentia bem. Eram os sinais de uma pré-eclâmpsia que tive uns dias antes do parto. Não foi possível salvar a criança. Eu fiquei, para meu desespero, com uma sequela para o resto da vida. Não poderia mais ter filhos. Uma tristeza imensa e sem fim. Mais de um ano para me recuperar. Ed foi perfeito. Deu-me apoio e carinho necessários. Talvez, arrependido de ter estado tão ausente durante minha gravidez e não ter percebido meu estado nas visitas rápidas em casa.

Aquele vazio permaneceu até que encontrei um bebê, uma menina. Abandonada na floresta. Trouxe-a para casa e ao mostrar ao Ed ele explicou-me que provavelmente alguma mulher  teve a criança fora ou antes do casamento arranjado (os casamentos eram arranjados entre as tribos). Ele disse que deveríamos entregar para uma instituição de caridade que cuidasse da adoção. Assustada eu me rebelei!  “Não”, exclamei, “poderíamos adotá-la”!  Ed argumentou que normalmente brancos não adotavam crianças negras (década de 1960), e que a comunidade ‘branca’ que eles frequentavam no Quênia não os aceitaria e muito menos manteriam contato com eles.  Fiquei arrasada com esta atitude preconceituosa. Inconsolável. Ed tentava me acalmar. Clarice, como nós a chamamos, foi sendo cuidada como nossa filha. Eu não me importava com as opiniões do outros. A não ser por uma grande amiga e seu marido, que nos apoiaram incondicionalmente. Quando eu precisei, pouquíssimos me ajudaram. Então, somente a opinião desses poucos eu considerava. 

Foi uma luta muito longa e interminável para se conseguir a adoção. Nesse interim os pais de Ed falecem nos EUA, deixando como herança para ele a fazenda em que moravam, bem próspera, um apartamento e ações. Ed não poderia recusar nada disso até porque nossa fazenda não estava indo tão bem. Conflitos entre as tribos da região retiravam os trabalhadores da fazenda dificultando o trabalho por causa da falta de mão de obra para cuidar de tudo. Além disso, o período das monções havia sido intenso e muito maior, estragando nossa lavoura. Enfim, estávamos em dificuldades para manter nosso sustento. Os safaris que Ed organizava e liderava também haviam diminuído por conta das chuvas intermitentes. Portanto, a notícia da herança chegou na hora certa.       

Fomos para os EUA com a guarda provisória de Clarice. Sempre tínhamos dificuldades com a comprovação de que ela era nossa filha adotiva. Mas Ed conhecia muitas pessoas importantes no Quênia. Além disso, a família dele e também os membros da igreja a qual pertenciam foram unânimes em nos ajudarem. Pensávamos que ficaríamos por algum tempo, mas foi para a vida toda. A fazenda era muito bonita e muito grande com plantação e gado. Seria uma pena vender tudo aquilo pelo qual os pais de Ed trabalharam tanto.  A nossa fazenda no Quênia era um terço desta. Os vizinhos foram muito acolhedores, mesmo achando estranho termos uma filha adotiva negra. A comunidade era tranquila, preocupada com seus afazeres e mais distante dos problemas raciais. Às vezes pensava no meu país, o Brasil, com sua candura racial comparada com a agressividade e violência norte-americana. Minha terra natal estava tão distante de mim, mesmo mantendo contato com a família, que esteve uma vez no Quênia nos visitando. 

Naquela época o preconceito racial era exacerbado na Geórgia e muito intransigente, podendo se transformar em violento, com um casal de brancos adotando uma criança negra. Lutamos com todos os recursos possíveis para matricular Clarice em uma escola razoável. Eu queria que ela fosse para uma Universidade. Aí a luta foi maior ainda. Passei a participar dos movimentos ativistas, pois ansiava por melhores oportunidades para minha filha. Clarice conseguiu entrar no curso de Administração da Universidade de Atlanta, historicamente frequentada por negros. Meu desejo era vê-la formada, não pretendia polemizar sobre os direitos civis. 

Clarice dedicou-se aos estudos e formou-se com louvor. Ajudava o pai a administrar a fazenda e logo outros fazendeiros pediram à ela que os assessorasse na administração das suas fazendas.  Durante o período universitário, ela conheceu um rapaz por quem se apaixonou; tiveram um romance ardente e no ultimo ano ela engravidou, mas conseguiu se formar um pouco antes de nascer o bebê;  e correu tudo muito bem; mais uma menina, Vanessa. O rapaz não quis assumir nenhuma responsabilidade. Não precisou. Nós apoiamos nossa filha e eu fiz todo o possível e impossível para que ela tivesse uma vida digna, respeitada e plena de amor. Felizmente, o trabalho (assessoria administrativa) de Clarice permitia que ela trabalhasse em casa e quando precisasse visitar os clientes eu cuidaria de Vanessa. E dessa forma nossa família seguiu em frente, orgulhosa de suas conquistas. Clarice não ficou sem o amor de um homem. Um fazendeiro que havia se mudado recentemente para a região, contratou os seus serviços de assessoria. Encantou-se, não somente com as qualidades profissionais, mas também por ela. E ele é branco! Ironias do destino, ou a vida a nos mostrar e apresentar pessoas que não se prendem às aparências, aos preconceitos e às regras vazias da sociedade. 

Vanessa é a minha neta que nasceu e viveu em um período de mais facilidades e oportunidades para os negros. Também envolveu-se nas lutas pelos desfavorecidos, participando de campanhas para angariar recursos em prol de entidades sérias que abrigam, orientam e encaminham jovens sem condições de estudo e emprego. Ela tem o apoio e o amor de um advogado que participa de uma das entidades, prestando consultoria jurídica.   Com a nossa proteção, a luta pelo reconhecimento dos direitos civis para todos independente da cor, o apoio de amigos e familiares, fizemos parte de um grupo que, aos poucos, conseguiu mudanças nas leis para que os negros fossem cidadãos respeitados. Se a minha filha alcançou um nível de reconhecimento profissional e pessoal, a minha neta foi além. Projetou-se no mundo das artes e da criação gráfica, em nível internacional, à custa do seu valor e qualidades únicas. 

Esta história começou e terminou pelo fim. Que estranho dizer isso, mas a minha neta Vanessa, foi o fio condutor desse relato de lutas, conquistas, vitórias, perdas, mas de muito amor e solidariedade.

Por: Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 
Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.



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