DA ADOÇÃO À ADAPTAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO

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Ronnaldo de Andrade.


O mestre J. Leite de Vasconcelos, em seu célebre livro “Poesia amorosa do povo português” (1890), fala sobre a existência de duas leis: da adoção e a lei da adaptação.  

O professor Afrânio Peixoto no seu “Trovas populares brasileiras”(1919), chama a essas leis de produção popular ou popularizada. O que não é diferente, em qualidade científica, do que nos apresentou J. Leite de Vasconcelos.

Quando o texto é popular (o povo o adota), a maioria das pessoas que o conhece, sabe quem o escreveu. No entanto, quando se torna popularizado (adaptado, modificado pelo povo), a maioria das pessoas desconhece a autoria, passando ele, o texto, a viver como filho adotado, como uma criança abandonada, sem o nome de quem o pariu. Isso faz com que o texto passe a ser compartilhado como de autoria anônima, quando, a meu ver, o mais adequado, nesse caso, seria o termo autoria desconhecida.

Peixoto, concordando com o apontamento de Jules Gambarieu, diz que “o povo é um mero agente de deformação...” e que Dóncieux sustentou que “todo conto (prefiro falar texto) popular tem origem concreta, data e pátria”, conforme dito lá atrás.

Cito como exemplo dois casos, sendo o último bem recente.

A trova setissilábica a seguir, intitulada “Até nas flores se encontra”, saiu da condição de popular e se tornou popularizada, foi apartada do nome do seu autor, passando a existir como anônima, assim como carregando consigo nomes de muitas outras pessoas.  Hoje há diversas adaptações desse texto, basta pesquisar na internet, sem pressa, para se certificar, que irá encontrá-la até mesmo em uma estrutura estrófica diferente da que foi concebida. Leiamos a trova original:


“Até nas flores se encontra

A diferença da sorte:

Umas enfeitam a vida,

Outras enfeitam a morte.” 


Na coletânea “Meus irmãos, os trovadores” (1956), o organizador Luiz Otávio colocou essa trova como sendo de Jerônimo Guimarães. Eno Teodoro Wanke (1974 e 1978) discorda dessa paternidade documentadamente e nos convida a lermos o livro Ressurreições (1879) de Antônio Castro Lopes. Nessa obra, segundo Wanke, se encontra o verdadeiro autor da trova acima, mas não irei me aprofundar neste texto sobre essa discordância, pois preciso encontrar um exemplar desse livro. Infelizmente, não encontrei em nenhuma biblioteca da capital paulista, nem na USP nem na internet. Se alguém tiver conhecimento de onde eu possa encontrá-lo, peço que me escreva, por gentileza. Contudo, já estou investigando outros documentos a respeito desse assunto para que posso dar seguimento ao estudo de trovologia. 

O poeta Olavo Bilac era um apreciador da trova e em certos momentos citava algumas em suas conferências para ilustrar sua fala, como fez na conferência A tristeza dos poetas brazileiros (sic), onde diz que nossas trovas populares são ingênuas e tantas vezes admiráveis, que vão por aí de boca em boca formando uma grande rapsódia. Mais adiante, com o intuito de mostrar que os poetas brasileiros são tristes de fato, diz, antes de apresentar uma trova popular, que a “tristeza começa logo a aparecer (sic) na poesia popular” e pede para que todos se lembrem das modinhas que são escutadas lá fora, na paz e na vida simples da roça.  

“Uma poesia que inventou estes versos: Alma no corpo não tenho,/ Minha existência é fingida;/ Sou como o tronco quebrado/ Que dá sombra sem ter vida... é uma poesia inegavelmente triste.” (1912, pp32/33). 

O poeta também dá exemplos de poesias tristes feitas por poetas cultos. Ele, Bilac, poeta culto e príncipe dos poetas brasileiros, adaptou a trova “Até nas flores se encontra” na quarta estrofe do poema, como podemos ver a seguir:


As Flores


Mundo deu a guerra,

A doença, a morte, as dores;

Mas, para alegrar a terra,

Basta haver-lhe dado as flores.


Umas, criadas com arte,

Outras, simples e modestas,

Há flores por toda a parte

Nos enterros e nas festas,


Nos jardins, nos cemitérios,

Nos paúes e nos pomares;

Sobre os jazigos funéreos,

Sobre os berços e os altares,


Reina a flor! pois quis a sorte

Que a flor a tudo presida,

E também enfeite a morte,

Assim como enfeita a vida.


Amai as flores, crianças!

Sois irmãs nos esplendores,

Porque há muitas semelhanças

Entre as crianças e as flores...


A verdade é que criatura e criador se afastaram forçadamente um do outro, e aquela passou a ser propagada sem o nome do seu criador, ganhando como alcunha o adjetivo de anônima. Anonimato esse que pode ser desfeito, às vezes, como ocorreu há menos de uma década com um texto em cordel da autoria da cordelista sergipana Izabel Nascimento.

Izabel escreveu um cordel e postou na internet. O texto não demorou para circular por vários cantos do Brasil via aplicativo de mensagens, tanto escrito como declamado em vídeo sem o nome da autora ser mencionado. Rapidamente, o nome da autora foi retirado do poema, passando a ser compartilhado como de autoria anônima, autor desconhecido.  

Isso deu margem para um ser mal intencionado assumir a autoria do texto e divulgá-lo como seu, cometendo um sério crime que vai além do plágio: roubo literário, apropriação indevida, e rendeu a ele um processo.

Alguns pesquisadores do folclore, da literatura popular oral, às vezes, resgatam o nome do autor de certos textos que circulam como anônimos e os devolvem a eles, mas nem sempre é possível essa descoberta. Creio que isso se dá porque as pesquisas seguem um outro itinerário e também não se encontram registros concretos, ficando só em especulações. O próprio precursor do cordel Leandro Gomes de Barros passou por uma situação assim, pois se apropriaram, assumiram, indevidamente, a autoria de muitos dos seus cordéis. O usurpador fez pequena adaptação para dizer que era seu. 

De modo geral, é certo dizer que, nem todas as modificações são positivas nem negativas. Parodiando Eno Teodoro Wanke, quando diz que uma obra medíocre pode se tornar uma excelente obra de arte ao sofrer alguma adaptação, como a emenda pode ficar pior do que o soneto. 

Um texto ao ser passado de modo oral, cada ouvinte o conta de maneira diferente e, em alguns momentos, sem citar o nome da pessoa que o criou, isso porque às vezes também não o sabe.  

Esse trabalho de adaptação é muito comum, principalmente na televisão, cinema e teatro. Na literatura tem crescido bastante e me refiro, exclusivamente, aos romances quem vêm sendo adaptados para o cordel por alguns poetas. O pesquisador da tradição oral e poeta Marco Haurélio coordenou a coleção Clássicos em cordel da Editora Alexandria, onde romances de prestígios nacionais e universais foram adaptados. Para essa Coleção Marco fez a adaptação de A Megera Domada e o Conde de Monte Cristo. Os poetas Varneci Nascimento, Pedro Monteiro, João Gomes de Sá e Moreira de Acopiara, entre outros participaram desse projeto de grande sucesso com outras adaptações. Os romances adaptados, antes foram adotados por um grande número de público, e dessa forma, mesmo que de maneira diferente, passaram pelo processo de adoção e adaptação.

No próximo número, tratando do processo de adoção e adaptação trarei Manuel Bandeira e algumas versões da trova “Atirei um limão doce”, também encontrada como “Eu joguei meu limão verde”.  Vejamos na íntegra essa, colhida na Bahia, pelo já citado pesquisar Marco Haurélio e publicada no seu livro de quadras e cantigas populares 


Lá Detrás Daquela Serra.

Eu joguei meu limão doce

Na porta da sacristia,

Deu na porta, deu no ouro,

Deu no amor que eu queria. 


Isso e muito mais estão sendo contado no livro que estou escrevendo sobre adoção e adaptação.  

Continua...

Por: Ronnaldo de Andrade - Poeta e Professor, tem quatro livros publicados 
e organizou quatro antologias de poemas SPINAS.


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