CORAÇÃO SEM DEFESA

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Desde garota queria ser advogada. Via meu pai trabalhando. Era advogado. Lidava com papéis, lia, estudava até tarde. Às vezes conversava com minha mãe sobre os processos que estava acompanhando, os julgamentos para os quais se preparava. Eu via a dedicação à profissão, o zelo em preparar a defesa de seus clientes, a consideração com cada um, a preocupação, a busca pela melhor orientação. 

Ainda adolescente, eu compreendia o comportamento de meu pai: ético, competente e respeitado. 

Além dos clientes que pagavam pelos seus serviços profissionais honestos e valiosos, meu pai também dedicava algumas horas na semana para defender gratuitamente pessoas injustiçadas, acusadas por outras mais poderosas (e ricas consequentemente) sem chance de defesa e de comprovação de sua inocência. Creio que essa era a parte do seu trabalho que meu pai mais gostava. A sua animação ao contar suas vitórias nos tribunais, salvando pessoas era genuína e perceptível. Isso me contagiava. Eu ansiava por trabalhar igual ao meu pai.

Ainda adolescente minha mãe sofreu um acidente grave, um atropelamento que lhe causou ferimentos difíceis de recuperação, agravado em consequência do diabetes. Lutou algum tempo, mas não resistiu.

Na idade em que eu precisava do aconselhamento de uma mãe, eu perdi a minha. Ficamos eu e meu pai, unidos pela dor e pela necessidade de apoiarmos um ao outro. A convivência com ele solidificou a minha vontade de estudar Direito e fui para a Universidade. 

Conversávamos muito, nós dois. “Filha”, disse-me ele muito sério um dia, “você não precisa ser advogada por minha causa; pense realmente em uma profissão que lhe atraia, além do Direito”. 

Eu respondi: “Pai, nenhuma outra atividade profissional me chama atenção como o Direito. Eu me empolgo com os seus relatos de trabalho e gostaria de fazer o mesmo pelas pessoas: defender seus direitos e proteger, por meio da lei, o que elas são e o que elas têm. Eu estou convicta, pai, da escolha que fiz: tornar-me uma advogada!”

Fiz um curso brilhante, pois estudava com gosto. Destaquei-me nos trabalhos, nos júris simulados, nas pesquisas, ao ponto dos professores me indicarem para estágios em escritórios de advocacia famosos que só recrutavam excelentes profissionais. 

No último ano da Universidade, eu recebi o convite para trabalhar em um renomado escritório de advocacia. E dessa forma, iniciei a minha vida profissional como advogada. O escritório tinha casos importantes e com bastante repercussão na mídia. Como a defesa que eu preparava para meus clientes era minuciosa e competente, eu sempre tinha resultados positivos e ganhava os julgamentos. A minha trajetória foi num ápice, com fama e dinheiro. Meu pai, com seu escritório acanhado, ganhava seus casos e continuava com seu trabalho voluntário atendendo aos necessitados. Um desses casos de defesa que dizia respeito a um grupo de pessoas que estava sendo despejado de um edifício comercial antigo e seria substituído por um shopping center e espaço urbanizado, esbarrou com o Escritório de Advocacia em que eu trabalhava. Meu pai representava o grupo de pessoas em ação de despejo e o Escritório defendia a Empresa Construtora.

Com esse litígio, meu pai passou a descobrir os trabalhos não tão honestos da Advocacia famosa a fim de aumentar seus lucros. E perseguir pessoas simples que defendiam seus espaços de trabalho e moradia. Por que tanto interesse naquele prédio? A questão era a futura urbanização da área pela prefeitura local, com a construção de avenida, metrô e outras facilities, transformando o local em área nobre e cara para aquisição. A Construtora do futuro Shopping pretendia comprar outros terrenos ou imóveis do entorno pagando preços módicos para depois construir e revender por preços altos e lucrar astronomicamente.

Meu pai conseguia enfrentar, apesar de certa dificuldade, o Escritório poderoso e influente. O grupo de moradores, de origem italiana, pedira ajuda a um advogado amigo que trabalhava na Itália. E assim chegou Paolo Vicentin. Uma figura impactante: alto, elegante, sério, muito sério. Mas, bonito, muito bonito. Um pedaço do mal (ou do bom) caminho! Quando ele falava todos se calavam. Voz retumbante, sonora e com sotaque italiano, parecia que cantava.

Encontrei com ele no escritório do meu pai. “Molto piacere, signorina”, disse-me ele, olhando fixo no fundo dos meus olhos. Aquele olhar penetrante abalou-me. “Igualmente”, respondi, meio desconcertada. “Então, você veio da Itália para ajudar seus amigos?” perguntei. “O dono do restaurante é meu tio. A família italiana sempre se ajuda, por isso vim”, ele respondeu. E falando em português muito bom. Conversamos um pouco mais sobre amenidades da viagem e em seguida meu pai pediu licença a mim para conversar com ele em particular. Ele não concordava que eu advogasse em um escritório que só queria saber de clientes ricos.  Desapontada por não fazer parte da conversa fui embora. Entretanto, eu me encontraria muitas outras vezes com o advogado italiano...

Iniciei uma pesquisa sobre a região e descobri que a Construtora, representada pelo Grupo Advocatício em que eu trabalhava, estava pressionando os pequenos proprietários a venderem seus imóveis e terrenos por preços muito aquém do mercado. E a pressão estava sendo truculenta! Ameaças físicas, pichações nos imóveis, presenças constrangedoras nos ambientes de negócios (no restaurante, nas lanchonetes, nas lojas de serviços em geral) e inclusive no entorno das residências. As famílias estavam temerosas até de saírem de casa para suas atividades normais. Isso, com certeza não me agradou. Comecei a investigar as ações do Escritório e descobri ações anteriores semelhantes às que ocorriam. 

A partir daí meu posicionamento começou a mudar. Parecia que um véu havia sido retirado da minha visão toldada. Passei a acompanhar meu pai com o advogado italiano e com os moradores. Inicialmente deu-me a impressão que eu estava espionando. Quando explanei minhas ideias em como enfrentar a Escritório fui levada a sério. E, certamente, demiti-me do tal Escritório famoso.

A batalha judicial que se seguiu foi muito densa, estressante, repleta de ameaças e ações truculentas. O advogado italiano revidava a todas da mesma forma. Pelas investidas finoriamente planejadas, pelas reações igualmente violentas com uma equipe treinada, ele conseguia responder a todos os ataques tanto judiciais como  criminosos de tal forma, que me pareciam dois grupos mafiosos se enfrentando.

Entre nós dois, eu e Paolo (o advogado italiano) foi se formando uma parceria, um entendimento, até uma cumplicidade. Um simples olhar e já sabíamos o que o outro estava pensando, que argumento usaria para a defesa e de que forma atacar o opositor, tanto pela lei como pela força. 

Que dupla formávamos nós dois! A convivência profissional se ampliou para a social. Almoçávamos juntos, jantávamos juntos e trabalhávamos juntos até tarde. Não tínhamos vontade de deixar um a companhia do outro. O aspecto profissional foi sendo um sucesso atrás do outro. Cada vitória era comemorada entusiasticamente. Com abraços, com brindes. Com os demais, sozinhos. Até que uma celebração acabou num abraço longo, longo e num beijo apaixonado. Foi o estopim para a paixão controlada aflorar com todo ímpeto!  Aquele italiano sabia como amar, acariciar e agradar. Na verdade brasileiro-italiano. Nascido no Brasil (por isso tão bom português), mas criado na Itália desde pequeno. 

Quem segura dois amantes apaixonados? Redundância, mas assim éramos. Apaixonados! 

O escritório do meu pai ganhou dois advogados super competentes, totalmente entrosados. Ganhamos a causa para o pequeno grupo de moradores do prédio a ser demolido. Depois da nossa estrondosa vitória no tribunal, quase não tivemos tempo de comemorar devidamente. Como sempre fazíamos. Paolo foi chamado à Itália. Problemas do outro lado do oceano demandavam sua presença e principalmente sua perícia. O dia da despedida parecia uma tortura. Ver afastar-se a pessoa que eu amava intensamente me abalou profundamente. E Paolo não disse nada para apaziguar meu coração. Nem que voltaria. Nem que eu fosse junto. Parecia que o amor intenso era só do meu lado. 

O avião decolou e eu vi sumir do alcance da minha vista o amor da minha vida. As lágrimas escorriam pelo meu rosto. Eu fiquei parada em frente ao janelão do aeroporto por onde observara o avião decolar até me recompor. Só eu fui ao aeroporto levá-lo.  Voltei para casa, enfrentei a solidão com a qual não estava mais acostumada. As noites eram um tormento. Povoadas de lembranças amorosas, eram difíceis de aguentar. Os dias, atribulados, passavam rápidos; eu ficava ocupada e anestesiada com tanto trabalho. 

Um mês e nenhuma notícia. No segundo mês, uma mensagem no celular: “Eu estou bem. Muitos problemas graves a serem resolvidos”. Mais um mês e continuava sem nova notícia. Fui aceitando o fato de que ele não voltaria. Qualquer barulho na porta do escritório do meu pai, onde fiquei definitivamente atuando como advogada, eu pensava que era ele. Fui desanimando e me envolvendo totalmente com o trabalho, que me absorvia, para não pensar nele. 

Três meses depois, numa manhã nublada, Paolo retornou. Ficou parado na porta, esperando eu levantar os olhos do papel que lia. Quando eu o avistei, fiquei sem reação momentaneamente. Em seguida, pulei da cadeira e fui correndo para os braços dele. Minha nossa, que felicidade!  O sol brilhava resplandecente. Foi testemunha de um beijo absurdamente apaixonado, que não terminava.

“Você voltou!” Exclamei. “Ah! Meu bom Deus! Você voltou!”

O resto, eu conto no próximo conto!!      


Por: Maria Teresa Freire - Jornalista, Escritora, Poeta, 

Presidente da AJEB – Coordenadoria do Paraná.





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