JUSSARA, EVA E KASIMIR

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 Hilda Suzana Veiga Settineri.


Jussara recebeu uma ligação de sua prima Dulce dizendo que a prima Hilda completaria 82 anos e estava preparando uma grande festa. Ela faz questão de sua presença, tendo em vista que foi sua babá.

Conversaram muito. Jussara soube que Hilda estava lúcida mas tinha muitas saudades dos que já haviam feito a passagem e também dos que se distanciaram para esse mundão afora. Daí a ideia da festa, com a reunião do maior número possível de parentes. 

Jussara não pensou duas vezes, afirmou que iria.

O dia todo ela relembrou sua infância, os primos, as travessuras juntos, a avó polonesa, a bapka, chamando todos para almoçar...era uma festa.

Contou os dias. “Como será reencontrar todos?”, pensou. “Alguns já devem estar com os cabelos brancos ou sem um único fio na cabeça...”.

A fazenda ficava numa pequena cidade pequena do Paraná.

Valdolf sugeriu que fossem de carro, assim poderiam passear com calma. Jussara concordou, dizendo para si mesma, “Vou visitar todos os casarões, se é que ainda existem.”

Chegaram à cidadezinha. Passaram em frente ao casarão onde um político havia morado e que ainda pertencia à família, mas que fora tombado.

- Gostaria muito de visitar a casa – declarou ao marido.

Viram horários e lá se foram. Ficaram deslumbrados com tudo nos seus devidos lugares, móveis, utensílios, tudo, até vestimentas e na parede vários quadros e fotografiaUma escada dava para uma porta enorme, que estava fechada. Jussara pediu as chaves à atendente. 

- Foi fechada há anos, dizem que é assombrada – explicou a funcionária.

- Quero entrar, por favor – insistiu Jussara, 

- Então vamos procurar as chaves – concordou a atendente, resignada. – Mas lhe adianto, não vou entrar.

- Sem problema – falou Jussara. 

Abriram um baú nitidamente do século XIX, trazido da Polônia pelos bisavós da família. Jussara foi logo pegando uns três molhos de chaves enormes, de ferro e bronze. Testou várias, trêmula e ansiosa por desvendar os mistérios de mais um casarão. Finalmente, uma das chaves abriu a porta, fazendo ranger as velhas dobradiças enferrujadas.

- Você vem, querido?

Valdolf sorriu para a esposa.

- Não, prefiro ficar por aqui. Vou ver a sala de montarias, você se importa?

Jussara nem respondeu. Abriu com algum esforço a pesada porta e avançou. 

- Não entre – suplicou Valdolf, embora soubesse que seria inútil insistir. – Espera, vou até o carro pegar uma lanterna para ti. 

Quando voltou, já não encontrou a esposa. Entrou com a lanterna ligada, avançou alguns metros e viu uma gruta brilhante, com pedras que clareavam o espaço. Jussara estava sentada em uma pedra, olhando para algo que ele não conseguia ver. Fascinado, Valdolf não se atreveu a interromper aquele momento mágico, deixou a lanterna desligada e voltou para ver outras partes da casa.

Jussara sentiu uma mão em seu ombro e viu uma criança, que pegou sua mão esquerda. Um menino louro de cabelos longos, vestido de branco, contou que sua mãe precisava de ajuda, os dois haviam se escondido por estarem sendo perseguidos. Em soluços repetia, “Salve minha mãe!”. 

- Qual o seu nome, querido?

- Kasimir Nowak. Minha mãe se chama Eva Nowak.

Jussara percebeu muito medo nos olhos daquele guri. Tentou abraçá-lo,  mas suas mãos se encontraram. Kasimir desaparecera, e em seu lugar surgiram raios de luzes claros como a neve.

Jussara avançou e viu, quase ocultos num canto, dois esqueletos, um bem menor que o outro, com farrapos de roupas de mulher e de criança. “Eva e Kasimir Nowak”, murmurou. Começou a chorar, lembrando o que a bapka havia contado das atrocidades sofridas pelos poloneses durante a Primeira Guerra Mundial. Naquela região predominavam os imigrantes alemães e protestantes; os poloneses, por sua vez, eram em geral eslavos e católicos. E mais, a Polônia fazia parte do Império Russo, que estava em guerra com a Alemanha. Foram o pretexto para vários assassinatos sem sentido, cometidos por indivíduos de origem alemã contra os polacos.  

Com os olhos vermelhos de tanto chorar, Jussara voltou à sala onde Valdolf a esperava. 

- Você está gelada e trêmula, meu amor. Que aconteceu?

Jussara contou-lhe tudo que havia escutado e visto e decidiu: 

- Vamos na igreja mais próxima buscar um padre.

Na igrejinha, ela explicou a um sacerdote o que deveria ser feito. Ele relutou, mas acabou acompanhando o casal pelo túnel do casarão. A primeira parte consistiu em derramar água benta sobre os ossos de Kasimir e Eva. A segunda, a ser realizada mais tarde, seria dar sepultura cristã aos despojos, num túmulo om a inscrição “Aqui jazem Eva e Kasimir, vítimas da intolerância política e religiosa”. Valdolf adiantou um dinheiro ao padre para as despesas.

Quando ela, o marido e o padre saíam, Jussara ouviu palavras pronunciadas por uma voz de mulher:

“Wielkie dzieki. Niech cie Bóg blogoslawi”.

Jussara não falava polonês, conhecia apenas algumas palavras ensinadas pela babka, mas estas eram conhecidas;

“Obrigada. Deus te abençoe”.

Por: Hilda Suzana Veiga Settineri - Escritora e Pedagoga.


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