HELENICE, UMA HEROINA BRASILEIRA

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O acaso produz muita coisa : “Le Hasard fait bien des choses”

DRª Virginia Pignot.



Encontrei casualmente Helenice, recém chegada de Brasília, escutando e dançando samba, no sul da França. Meu irmão e cunhada Ricardo e Ladjane tinham vindo nos visitar, era a noitada da despedida deles, e eles aceitaram a proposta de ir escutar samba cantado e tocado por franceses. 

Helenice contou que chegara a pouco com dois filhos, só com sua magra aposentadoria brasileira, disposta a trabalhar, para tentar oferecer futuro melhor para os filhos. No passado seus pais, agricultores humildes do interior do Piauí, já não conseguindo oferecer vida digna à família com o suor do trabalho na terra, tinham emigrado com malas e cuias para Brasília. Helenice se tornou professora da rede pública. Com o pouco que ela me contou, sua história já me interessou.

No segundo encontro, também casual, disse que queria seu contato, falei da vontade de contar sua história, ela aceitou. 

Resistência, desde o período fetal

Filha de mãe índia e pai negro, a mãe de Helenice era rejeitada pelo sogro. Os índios eram tratados pior que os animais. A família do pai era proprietária de terras cultiváveis, mas quando a seca batia, podiam atravessar dificuldades. Quando sua mãe que já tinha três filhos e engravidou de novo, foi aconselhada pela sogra e aceitou tomar uma planta com efeito abortivo, a contragosto. Perdeu um feto, mas meses depois, surpreendendo a família, nasce uma minúscula Helenice. Ignoravam que a gravidez da mãe era gemelar, um dos fetos resistiu. Helenice sobreviveu também a uma epidemia de disenteria devastadora que levou muitas crianças, inclusive seu irmão mais velho, o que contribuiu para a decisão de emigração do pai.  

Mãe solteira e a batalha pelo direito à creche

Vamos passar agora para outra etapa da vida de Helenice. Mãe solteira vivendo com dois filhos, seu salário não dá para pagar aluguel, alimentos, transporte e creche ou bábá . Ela sai de casa deixando a panela com comida, água, deixando brinquedos, papel, lápis, e a recomendação que o filho mais velho, sério, esperto e ajuizado apesar dos 5 anos de idade, não abra a porta. Sofreu queixa do conselho tutelar, mas como fazer de outro modo? Na época, professores de escola pública em Brasília não tinham direito de deixar os filhos na creche pública, gratuita. Uma deputada sensibilizada pela situação de Helenice decidiu entrar na briga, fazendo um projeto de lei que aprovado, permitiu o direito aos professores de escola pública de ter acesso gratuito a creche. O pesadelo de ser considerada uma mãe má e de perder o direito de cuidar dos seus filhos acabou.

Como a reforma de ensino médio do governo Bolsonaro mexeu com a sua vida

Vamos passar agora para uma parte mais recente da sua história. Apesar do filho mais velho ter sido diagnosticado com um distúrbio do espectro autístico, tendo particularidades na questão do laço social, é muito inteligente, toca piano, excelente aluno, pensava fazer medicina. Mas ai chegou a reforma do ensino médio do governo Bolsonaro, que esvaziou o conteúdo do ensino de segundo grau de escolas públicas. Seu filho estudante do segundo grau na rede pública da zona leste de Brasília, voltou a estudar conteúdos que tinha aprendido na sexta série. O conteúdo pedagógico adaptado para passar com estudo no vestibular ficou excluído nas escolas públicas de Brasília, cujo atual governador aplicou à risca a reforma bolsonarista. Foi o que fez Helenice, que já tinha aprendido frances com uma bolsa de estudos, decidir de se lançar na aventura da tentativa de imigração, para tentar oferecer um futuro melhor para os filhos. 

E agora?

Helenice ganha um dinheirinho extra passando roupa, e já conseguiu comprar um piano eletrônico para seu filho poder praticar. Com ajuda de uma brasileira, um frances amigo aceitou alugar um quarto para ela e seus filhos. Um filho pretende se inscrever para uma escola de cozinha, outra paixão dele, e o mais novo vai começar o segundo grau, e pretende se inscrever no conservatório para o aprendizado do piano a partir de setembro. Concluindo com samba da Mangueira 2019:

“Brasil, meu nego deixa eu te contar, a história que a história não conta...

Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”.  Salve Helenice!


Por: DRª Virginia Pignot - Cronista e Psiquiatra.
É Pedopsiquiatra em Toulouse, França.
Se apaixonou por política e pelo jornalismo nos últimos anos. 
Natural de Surubim-PE
Correspondente da França.


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