DOCES RECORDAÇÕES

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Ariadne Quintella.



Quando menina, vivi à sombra do latifúndio em Casa Amarela, e vi crescer um desses aglomerados, hoje tão comuns no Recife, e que fizeram a cidade inchar à medida que se expandiam. Moradias construídas em terreno foreiro, autorizadas pelos proprietários da terra, os Rosa Borges, os Vieira da Cunha, os Allain Teixeira, o legendário Santo Marinho, meu avô. O Vasco da Gama era um desses lugares e também começava a crescer com um caminho irregular entre dois “cordões” de minúsculas casas, que ia da Avenida Norte (naquele tempo uma estrada de ferro sem nome por onde passavam os trens até a “divisa” com o Brejo, onde mais tarde se desenvolveu um comércio de padaria, lojinha, farmácia, açougue, tabuleiro de verduras e frutas, e também o terminal de ônibus. À entrada do Vasco da Gama, onde o caminho faz uma curva, ficava a casa de Rosa Bazanti, dona Rosinha, neta de italianos, uma liderança comunitária graças ao excesso de sua energia. Cedo ficou viúva com oito filhos para acabar de criar (casara aos 13 anos), sendo quatro homens Murilo, Mozart, Moisés e Maurício, e quatro mulheres Juvanete, Juraci, Jaci e Janete. Todos eles rendiam respeito absoluto à mãe.

A casa, um chalé, era encravada numa grande propriedade. Nos fundos do chalé ficava o roçado de milho, macaxeira, inhame e, em seguida, ficava a mata, que os antigos moradores diziam ter sido plantada por dona Rosinha. Nos oitões da casa os caminhos eram feitos por jambeiros do Pará, de onde pendiam imensas caqueiras com avencas de metro. Na frente havia os canteiros de rosas e de outras flores, onde borboletas e beija-flores faziam a sua reverência, voando muitas vezes até o caramanchão coberto de jasmins brancos e perfumados, O sítio de dona Rosinha era uma espécie de pulmões que refrigeravam toda aquela localidade. As filhas professoras também eram muito respeitadas pelos moradores do Vasco da Gama, Nova Descoberta, Brejo e de outras partes, porque a maioria com elas estudara desde as primeiras letras.

Famosas eram as festas de São João e de Ano Novo, quando todos os vizinhos ali passavam para render-lhes homenagem, ao lado de pessoas mais abastadas vindas de outros cantos do Recife. Ricos e pobres na confraternização de dona Rosinha. O tempo se encarregou de varrer tudo. Primeiro os latifundiários que eram dono do pedaço e, em “nome do progresso”, conforme anunciavam, trataram de reduzir o universo de dona Rosinha, derrubando a golpes de machado toda a mata para construir moradias de aluguel. Restaram para ela e seu grupo familiar o chalé, um pequeno pomar, aos fundos do chalé, os jambeiros e as roseiras. Dona Rosinha entristeceu, mas não desanimou – aprendeu aos poucos a viver num mundo menor sempre atenta às suas plantinhas, até o dia em que, para tristeza do bairro, ela teve de enfrentar a “grande passagem”. Também sensíveis, com ela sucumbiram roseiras e samambaias. 

Os últimos herdeiros da senhora de olhos verdes, cabelos longos e brancos presos no alto da cabeça (só duas filhas e um filho) venderam a casa-grande, tipo chalé, à Caixa Econômica porque a vida ali tornara-se inviável, e sobre os canteiros esmagados pelo trator surgiu um grande conjunto residencial. São oito blocos de edifícios, cada um deles com uma infinidade de apartamentos. O Vasco da Gama ficou sem seus pulmões. Os moradores queixam-se do calor. Sumiram os cachos de jasmim derramados sobre o muro, enfeitando uma paisagem que já não floresce como antigamente. Também murcharam minhas ilusões num mundo cada vez mais carente de afeto.

Por: Ariadne Quintella -  Jornalista 
especializada em Turismo


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