ELZA SOARES, A CANTORA DO MILÊNIO

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 “Venha cá menino, não faça isso não, sei que é muito triste, não ter casa, não ter pão. Não te leva à nada, destruir o teu irmão, você representa o futuro da Nação.” Meninos, música de Elza Soares.


Virginia Pignot.

I Introdução

Morre a cantora Elza Soares, na tarde do dia 20-01-2022 aos 91 anos. Na data aniversario da morte de Garrincha, seu maior amor, 39 anos depois, e há um dia do aniversario da morte de outra diva do canto brasileiro, Elis Regina.(1).
Se foi numa quinta-feira, tinha gravado e cantado no teatro Municipal do Rio de Janeiro na segunda e na terça da mesma semana, para um documentário memorial. Fez como anunciava no canto ‘A Mulher do fim do Mundo’: “Eu sou, e vou até o fim, cantar.”
Ela foi considerada uma das melhores cantoras do mundo, sendo eleita a “Cantora do Milênio” em 1999 pela BBC de Londres. Foi escolhida a embaixadora do samba, cantou à capella o Hino Nacional para 80.000 pessoas na abertura dos jogos Pan Americanos de 2007 no Rio, cantou na abertura dos jogos Olímpicos no Rio em 2016.(2)
Elza foi e permaneceu até o fim da vida, uma menina do povo brasileiro, “capetinha”, inteligente, que não baixou os braços na adversidade, e mesmo quando já consagrada e bem de vida, denunciou com sua carreira e escolhas musicais o racismo, os preconceitos da burguesia, a violência contra as mulheres, como no canto “Maria da Vila Matilde”: “Cadê meu celular vou ligar para o 180, vou entregar teu nome e explicar meu endereço, aqui você não entra mais...e jogo água fervendo se você se aventurar...cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim” (3). 
Traçou um caminho firme de resistência e não submissão, contra essas mazelas que corroem e dividem a sociedade brasileira. 
Proponho um passeio na sua vida e obra, com trechos de música sua ou interpretadas por ela.
Elza é ‘uma filha tua (que) não foge à luta’ da sua amada pátria Brasil.
Espero que a história dessa guerreira os encante e mova.
“Você deve perceber que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado
  
Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado.
Você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre muito obrigado…Você merece, você merece” .
Comportamento Geral, Gonzaguinha.

II Primeiros passos


“Se não tem carne, eu compro osso e ponho na sopa…” Opinião, Zé Keti, lançado em 1964.
Elza da Conceição Soares nasceu na favela Vila Vintém, Moça Bonita, de Padre Miguel. Filha de mãe lavadeira, e de pai operário e músico amador. A família era e permaneceu unida, mesmo depois da morte dos pais. Diz ter tido uma infância dura, mas feliz. Elza já cantava com uma lata d’água na cabeça, ajudando a mãe a executar o seu trabalho, e com o pai que era músico amador, e os amigos do casal, fazendo o orgulho do pai, nos encontros musicais no quintal de casa.
Os pais trabalhavam, mas não ganhavam o suficiente para alimentar corretamente os filhos.  Quando tinha 12 anos, o pai surpreendeu uma briga entre ela e um rapaz, e pensou erradamente que o rapaz a tinha estuprado, obrigou o casamento(4). Aos 13 anos, nasceu seu primogênito. Elza diz: “ele foi praticamente o primeiro brinquedo que tive.”
O marido morreu cedo de tuberculose.
Ela trabalhou em fábrica de sabão, em casa de família, em hospital psiquiátrico. Os médicos gostavam pois ela acalmava os doentes cantando. 
Aos 23 anos em 1953, já viúva ela participou com sucesso do programa de calouros de Ary Barroso, na TV Tupi. Sua motivação para tentar ganhar o prêmio, era a de salvar um filho da morte por doença e desnutrição.
Mas só em 1960 ela gravou o primeiro disco “Se Acaso você chegasse” de Lupicínio Rodrigues e “Mais que Nada”, de Jorge Bem. O sucesso foi imediato. 
Madrinha da Seleção brasileira de futebol em 1962, ela foi ao Chile com a equipe, e ai encontrou Garrincha.. Os dois tinham pontos em comum e se aproximaram. Coração generoso, sensualidade, ambos tinham crescido na pobreza, casamento e filhos precoces, fama e sucesso com seus dons respectivos. A relação se transformou em uma grande história de amor(5), afetada mais tarde pelo alcoolismo que levou Garrincha à morte.
‘A Carne mais barata do mercado é a minha carne negra’. Musica de Seu Jorge.

III Lutas inglórias e como transformar a dor em canto.

“Olha, não tem ninguém na rua, não tem ninguém no açougue, não tem ninguém pra ver e contar…Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda”.
Luz Vermelha, de Cristiano Dinucci e Eduardo Climachauska, do disco A Mulher do fim do Mundo, de 2015, parece antecipar o isolamento social da pandemia, o risco de esgotamento dos recursos do planeta, da poluição e desregulação climática que mata.

a) Elza teve que enfrentar muitos preconceitos, e foi vítima de perseguição. 


Primeiro, o de cor, pois não queriam que ela cantasse em boites e clubes porque era negra. Depois, a sociedade desinformada pela imprensa interpretou erradamente que ela roubou Garrincha da esposa, agredindo a família recomposta quando eles resolveram assumir a relação. 
Depois, com a chegada da ditadura, foram perseguidos, com o pretexto que ela tinha cantado no comício show do presidente deposto João Goulart. Homens da polícia politica invadiram a residência da família, um deles abriu uma gaiola (Garrincha adorava passarinhos) e esmagou com a mão um passarinho diante das crianças. Quando passaram atirando de metralhadora na residência do casal, e mataram o segurança, a família partiu para o exílio na Itália, em 1970. (6) Na Itália, receberam o apoio de Chico Buarque e Marieta Severo, que também estavam exilados la.

b) A perda de filhos, a perda da mãe.

Antes de ganhar a vida como cantora, Elza perdeu um filho de fome, e perdeu outro de doença.
Uma filha sua foi sequestrada quando criança, e só se reencontraram quando a menina era adulta.
Talvez por isso ela interprete tão bem, vem do fundo do peito, a música “Meu Guri”, de Chico Buarque, que retrata a dor de uma mãe que perde um filho.
O filho que tinha tido com Garrincha, muito querido, morreu jovem adulto de um acidente de carro, justamente quando ia visitar a terra natal do seu pai. Elza chorava tanto durante esse período, que tinha decidido parar de cantar, e trabalhar num orfanato. Foi dissuadida por Caetano Veloso, que a convidou para participar do disco Língua. Ela reatou então com o prazer do canto.
A mãe de Elza, Dona Rosaria, morreu num acidente de carro no qual Garrincha dirigia. O problema, é que ele estava alcoolizado. Esse acidente talvez tenha precipitado o fim da relação que durou dezessete anos. Garrincha morreu numa clínica psiquiátrica onde tinha sido hospitalizado por complicações do alcoolismo, alguns anos depois da separação, em 1983. 
“Levo minha mãe comigo, embora se tenha ido.
Levo minha mãe comigo, pois deu-me o seu próprio ser”. Comigo, Romulo Froes e Alberto Tassinari

IV Trabalho, engajamentos e reconhecimento


“Pra que separar, pra que desunir, pra que só gritar? Por que nunca ouvir? Pra que enganar? Pra que reprimir? Por que humilhar e tanto mentir?
O Meu país, é o meu lugar de fala…” O que se cala, Douglas Germano
Elza ganhou o Grammy Latino pelo melhor disco de MPB em 2016, com A Mulher do Fim do Mundo, no qual denunciava o racismo e a violência doméstica (2).
Aos 89 anos desfilou como convidada de honra na Escola de Samba Mocidade de Padre Miguel , e rendeu bela homenagem à sua escola no programa Ensaio, da TV Cultura, cantando: 
“Eu sou independente, sou raiz também...meu Ziriguidu fez brilhar no céu a estrela guia de Padre Miguel...Ah vira-vira vira-virou, a mocidade chegou... chegou na virada da vida uma canção de amor… salve a mocidade, salve a mocidade.”(4)

Gravou, entre outros sucessos:


“Mulata Assanhada, 1965, Lata d’Agua na Cabeça, Não me diga adeus, Ziriguidum, Maracangalha.
Interpretou “Brasileirinho” com Baby Consuelo. 
Fez muito sucesso com “Carne”: nesse título nos encoraja a “Brigar por respeito…” e lembra a permanência da nossa herança maldita de passado colonial/população colonizada e de escravidão no Brasil. 
Com a maturidade ela se descolou da etiqueta de cantora de samba, e cantou em estilos variados, com bandas jovens de rock, de rap, de música eletrônica. Defendia o direito de não parar no tempo.
Destacamos, deste período, os discos A mulher do Fim do Mundo, de 2015, Deus é mulher, de 2018, Planeta Fome, de 2019. 
Este último titulo é uma referência à sua primeira aparição na TV. Com 33 kls, não tinha roupa, vestiu um vestido da mãe, que pesava o dobro dela, apertou com alfinete… Quando entrou, o publico começou a rir, Ary Barroso perguntou de que planeta ela vinha. “O mesmo que o senhor”, disse Elza. E qual é o planeta? “O Planeta fome”, respondeu Elza. Os risos cessaram, ela pôde cantar e ganhou o prêmio dos calouros.(5)
Ajudou muitos artistas debutantes, como a Clara Nunes, quando ela chegou no Rio, de família sem recursos...
Nos anos noventa deu aulas de canto em vários lugares, inclusive pelo interior do país.
Apelidos: Rosa Morena, Guerreira, Abelha Rainha, Gata de sete fôlegos, Dura na Queda. 
Com os anos, caiu no palco, machucou a coluna, deixou de sambar, cantava sentada.
“O sol, há de brilhar mais uma vez, a luz, renascerá nos corações, do mal, será queimada a semente, o amor, será eterno novamente” Juízo Final, Nelson Cavaquinho

V Conclusão


“Quais são os recados que as baleias têm pra dar para nós seres humanos, antes que o mar vire uma gosma?
As escolas se transformaram em centros ecumênicos.
Exu te ama. Ele também está com fome porque as merendas foram desviadas novamente” Exu nas escolas, Edgar, e Kiko Dinucci.
Elza faleceu de causas naturais aos 91 anos de idade, de tarde, em sua casa, no Rio de Janeiro. Pediu para se deitar, disse que estavam vindo buscá-la, adormeceu, morreu tranquilamente.
 “Sua capacidade vocal excepcional e seu senso inato do ritmo fizeram dela a cantora mais premiada do Brasil.” (7).

Entrevistada por jornalista do periódico Inglês The Guardian, ela não quis comentar sobre politica, sobre o governo Bolsonaro, mas disse que achava que o brasileiro precisava aprender a votar.(8) Interrogada sobre como ela conseguiu manter o alto nível criativo e pessoal, apesar das dores, ela responde que as pessoas lhe inspiram, e compara o canto com o dar à luz: “Cantar é como dar um pedaço de felicidade, dar a sua voz, para todo mundo”.(8) Obrigada, Elza.

Bibliografia


1 Elza Soares morre no aniversario da morte de Garrincha. Redação, Jornal GGN, jornalggn.com.br 20-01-2022
2 The Future Present com Elza Soares Google the futurepresent.com/el
3 Elza Soares - Maria da Vila Matilde (Oficial – Ao Vivo no Auditório do Ibirapuera), You Tube
4 Elza Soares Programa Ensaio Fernando Faro TV Cultura, 1991
5 Gente de Expressão, Bruna Lombardi com Elza Soares
6 Elza Soares, a Cantora do Milênio. TV GGN, com Luis Nassif, Adelzon Alves, Luis Filipe de Lima, Marcelo Laranja, Jorge Simas
7 Elza Soares, biographie, Wipipédia fr.m.wipipedia.org/wiki/Elza_
8 ‘Singing feels like giving birth’: Brazilian samba star Elza Soares at 90. Carolina Abbott Galvão Music Interview, The Guardian, 03-11-21

Por: Virginia Pignot - Cronista e Psiquiatra.
É Pedopsiquiatra em Toulouse, França.
Se apaixonou por política e pelo jornalismo nos últimos anos. 
Natural de Surubim-PE.


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