O CAFÉ DE LARA

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Pr. Geraldo Magela.


Ele sentou na cadeira, segurando com mãos trêmulas uma xícara de café bem quente e se acomodou como pôde para ver o dia nascer. Havia enterrado Lara, aquela que fora sua esposa durante 60 anos, na manhã do dia anterior (Ou teria sido 50 anos? Um erro de dez anos era tão comum nos últimos anos quanto um erro de um ou dois não lhe era raro na juventude). Daqui a pouco o sol iria começar a romper a escuridão que reinara na madrugada da noite sem som. Sabia disso porque alguns pássaros começavam a cantar, ali e aculá . “O café estava somente bom...” pensou, quando veio a sua memória que a morte de Lara era a única certeza que lhe incomodava, que ia ficar com medo quando ela partisse. Talvez o medo de viver o resto da vida sem ela só viesse consumi-lo mais lá na frente. O que o inquietava agora era algo muito mais denso: um vazio tão palpável que parecia uma entidade sentada ao seu lado. Se se esforçasse um pouquinho daria até para bater m papo com “o nada”, pensou. Tentou esquecer o medo, pensando no que foi sua vida com Lara. Lembrou da primeira vez que tomou suas mãos e as beijou. É incrível como essa lembrança involuntária produziu uma carga de emoções tão fortes quanto um nocaute. Por um momento sentiu o até cheiro do perfume que ela usou naquele encontro. Uma relíquia que ele imaginava perdida para sempre. Bebeu um grande gole do café, como se quisesse se afogar nele. Os olhos marejaram. Concluiu que o vazio que sentia era um companheiro muito pior que a solidão. Nunca mais iria confundir uma coisa com a outra. Deixou que sua mente o levasse a outros momentos de seu passado, mas tomou o cuidado de não se ater demais em nenhum deles. Lembrou de quando deu a ela aquele absurdo de flores no primeiro aniversário de namoro, do horror da primeira casa onde moraram, do nascimento de dois de seus três filhos, da vontade que teve de esganá-la quando ela gritou com ele na frente dos amigos, dos filmes que assistiram juntos e... do café que ela sabia fazer como ninguém! O aroma do café de Lara bailou por uns bons segundos naquele terraço. Talvez o seu relacionamento de décadas tenha sido de fato amor. Sentiu isso porque até as lembranças que lhe deixavam fulo da vida com Lara apenas aumentaram o prazer daquelas recordações. Sentiu gratidão por ela ter cuidado dele por tantas décadas. De perto dava para se perceber um leve sorriso em seu rosto lacerado pelo tempo. Mas, muito de perto mesmo. Agora, os passarinhos cantavam numa formidável confusão. Nada lembrava uma sinfonia. Era um caos de pios, trinados, assovios, semi-gritos e estalidos. Ficou intrigado como os pardais empestaram o mundo: os ratos também venceram nos céus! A noite inapelavelmente estava sendo derrotada pelo dia. Dentro de doze horas lhe daria o troco. Um trabalhador passou, viu o velho sentado no terraço da casa e grunhiu uma saudação qualquer. Ele só levantou a mão, num aceno preguiçoso e, depois, tomou o último gole do café, que agora estava quase gelado. “Que porcaria...” Foi quando sentiu que mãos lhe tocavam nos ombros e um leve beijo pousou em sua face. A dona da voz postou-se por trás, as mãos suavemente pousadas em suas costas, depois de ter afetuosamente retirado a xícara das mãos dele. A jovem senhora ficou de pé, por trás dele, tentando imaginar os detalhes do que ele estava pensando e para onde cargas d’água ele estava olhando. O velho não precisou virar-se para ver quem era, a voz lhe soava familiar e querida: “O café estava bom, pai?” Respondeu que sim, muito bom. “De tarde eu tenho que voltar pra casa. Tem tanta coisa para fazer... O senhor vai ficar bem?” A voz em tudo lembrava a voz de Lara. Ele gostaria de ter gritado que sua filha ficasse em casa até ele próprio morrer, que aprendesse a fazer um café decente, que não estava sabendo lidar com todos esses fins que antecedem o fim, (mesmo tendo teorizado sobre cada um deles no passado), que estava morrendo de medo virar um velho melancólico e chato. Mas respondeu que ficaria bem, que ela podia ir e agradeceu com sinceridade por ela ter ficado mais que os outros. “Deixe que eu levo a xícara pra lavar”, disse, se levantando e retribuindo o beijo de bom-dia. “Sua mãe gostava de dizer que era a única coisa que eu sabia fazer para ajudar ela.” Quando depositou a xícara na pia, lá fora já era dia feito. *Surubim, 23 de janeiro de 2010.

Por: Pr. Geraldo Magela.



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